Em tempos de tantas opiniões, sobra lugar para a crítica?

Essa semana estreou nos cinemas o novo filme da Warner baseado na DC Comics, o Aquaman. Novamente um novo blockbuster atingiu tudo aquilo que se esperava de um projeto desse porte hoje em dia: altas bilheterias e a reação apaixonada dos fãs do estúdio – ou então do “rival”.

O que era comum há 20 anos numa rodinha dos amigos ao fim de uma sessão se tornou imediato e universalmente abrangente com o alcance da internet. Horas depois de assistir aquele seu filme mais esperado do ano, já se tem uma ideia média de como os principais veículos especializados do mundo reagiram. As colunas de jornal com a crítica da semana de antigamente hoje viraram compilações nos agregadores (do tipo Rotten Tomatoes e Metacritic) e dão a ideia de que a quantidade dos que se intitulam “críticos” cresceu exponencialmente. Dali sai a “nota” do filme – que na verdade é uma medida indireta sobre a relação entre aprovações e desaprovações – e a impressão que o julgamento de valor já está estabelecido mesmo antes das estreias no circuito comercial. O resultado disso é a banalização do termo “crítica” e uma reação contrária a uma profissão que existe desde de quando o cinema começou a ser encarado como arte.

Falar um pouco sobre a história do cinema dialoga bastante com a origem da crítica. É preciso lembrar que lá no fim do século XIX e início do século XX, os filmes não eram tratados como uma forma genuína de arte. Os primeiros experimentos com as imagens tinham um caráter de exploração, curiosidade e representação documental da realidade. Com o tempo, artistas como George Méliès, Edwin S.Porter, Alice Guy-Blaché e D.W.Griffith descobriram o poder narrativo dessas imagens e, principalmente, da combinação entre elas (a montagem), criando o entendimento de que o cinema tinha sua própria forma de se comunicar, isto é, sua linguagem.

Logo no momento que os filmes ganharam o status que mereciam – juntamente com seu crescimento como indústria e negócio –, os primeiros críticos começaram a escrever seus ensaios. Nomes como o italiano Ricciotto Canudo, autor do primeiro texto que defendia o cinema como arte; o francês Jean Epstein, um dos maiores cineastas do cinema mudo e Louis Deluc, do impressionismo francês. Esses foram os primeiros a encarar em suas análises um filme com a profundidade de uma obra de arte, assim como era com a pintura, a dança, o teatro, etc.

A partir anos 1940, os ensaios começaram a ganhar mais popularidade e um estilo de argumentação e escrita definidos. Surgiram durante as décadas seguintes nomes como o do americano Andrew Sarris, proponente da teoria do autor – que ficou marcada por apontar que uma obra cinematográfica era resultado da visão predominante do diretor e suas concepções, que dariam a cada projeto sua marca como um verdadeiro autor. Outra grande conhecida da época foi Pauline Kael, conhecida pelos textos afiados e contestadores que a fizeram se tornar uma das mais influentes críticas do cinema americano. André Bazin também foi importantíssimo na teoria do cinema, além de ter sido o co-fundador da revista francesa Cahiers du Cinéma, de onde saíram os nomes dos futuros diretores da Nouvelle Vague.

Se falarmos de uma época mais recente em termos de história (anos 70 e 80), onde a televisão já era o meio principal de entretenimento caseiro, certamente Roger Ebert é o mais icônico. O programa semanal que apresentava com Gene Siskel ficou famoso por misturar uma linguagem bastante acessível com a crítica de cinema. Ficou comum para o público ter uma voz que representasse a aprovação (ou não) do próximo lançamento da semana. Mas Ebert não fazia só isso. Durante sua carreira, escreveu livros e diversos ensaios com suas visões precisas sobre o cinema como arte, ajudando a demolir certos preconceitos e expandido o poder dos filmes.

Durante muitos desses anos, uma crítica num jornal poderia exercer considerável influência sobre o público, chegando até a mudar significativamente a bilheteria de um grande lançamento. Com o tempo, isso foi diminuindo principalmente pelo fato de que esse monopólio da opinião foi bastante diluído com as mídias online. Há centenas e centenas de sites, blogs e canais no Youtube que se de dedicam a falar sobre filme diariamente, cada um com seu público preferido e com várias visões espalhadas em cada cantinho do mundo virtual (isso pode estar mudando com o aumento da influência dos agregadores online, mas isso fica para um outro momento).

Isso tudo serviu para que o leitor perceba que a crítica existe há muito tempo. Mas porque ela ainda é um alvo tão fácil de generalizações e de tanta incompreensão por parte do público? Talvez eu posso te ajudar um pouco respondendo às perguntas e manifestações mais comuns que vejo por aí:

O crítico americano Roger Ebert

Para que serve a crítica?

Talvez antes de responder para que ela serve seja importante definir o que ela não é. Uma crítica não é um guia de consumo, um atestado de validade, uma verdade absoluta ou sequer algo que deva ditar o gosto de alguém. Ela é, sobretudo, uma defesa de um ponto de vista, que tem como principal função convidar o leitor para que ele reflita sobre o que viu.

Tenho opinião própria. Não preciso de crítica para me dizer o que gostar.

Uma crítica jamais tem como objetivo te indicar o que deve ou não gostar. Nem sequer julgar seus gostos pessoais. O papel dela termina no momento em que você, como leitor, foi “obrigado” a refletir sobre o filme que viu. A partir do momento em que você foi levado a considerar ou rever qualquer coisa sobre algo que talvez não tivesse absorvido, ela cumpriu seu dever. Concordar com ela não é importante, e sim apenas considerá-la como fonte de reflexão. Você pode ler 20 críticas negativas sobre um filme e continuar a achá-lo ótimo sem o menor problema, mas elas certamente o fizeram pensar sobre alguma coisa.

Mas então porque me dar ao trabalho de ler uma crítica? Se todo mundo tem opinião, todo mundo é crítico.

Ao contrário do que a maioria pensa, opinião não é sinônimo de crítica. Mas elas também não estão separadas em extremos. Opinião é o “achar”. Achar um filme bom ou ruim é uma forma que só você tem de entender o impacto que uma obra te causou. Ela só diz respeito a você e às suas impressões pessoais. Já a crítica é a explicação, a fundamentação e a defesa pela qual você justificará o seu gosto. Opinião é “eu gosto desse filme”. Crítica é “eu gosto porquê… “.

Justificar como?

Nenhum filme nasce de mágica. Embora tenhamos a inclinação natural de rotularmos assim nosso amor pelos filmes preferidos, a verdade é que cada sentimento que te foi despertado na tela resultou de uma lógica aplicada pelos realizadores. Assim, há uma série de critérios objetivos que compõe a linguagem cinematográfica. Há um roteiro que seguiu um longo histórico de experimentos e autores, uma fotografia que encontrou o que funciona em sua gramática a partir do que desenvolveu ao longo de mais de um século e uma direção que sabe que existem maneiras certas e erradas de se contar uma história baseada em uma rica linguagem. É importante frisar que “certo” e “errado” no cinema, apesar de se apoiar em critérios objetivos, jamais compartilha o rigor matemático e absoluto, isto é, há sempre uma subjetividade que nasce quando o próximo movimento ou cineasta quebra alguma regra e incorpora mais uma nuance (ou revolução) na linguagem – e isso aconteceu bastante na história do cinema. Os filmes de hoje são bem diferentes dos da década de 1920 porque a própria linguagem se movimenta, muda e incorpora. E mesmo que a maior parte da teoria confirme uma certa visão, não há como impedir que ela seja contestada por uma boa critica.

A diferença entre a reação do público, da bilheteria e dos críticos mostra que tem razão é o “povão”.

Bilheteria definitivamente não é sinônimo de qualidade. Há muitos exemplos de obras apontadas por vários críticos como, no mínimo, problemáticas, que são avassaladoras em seus números de espectadores e lucro. Grande parte disso se deve ao marketing intenso (uma enorme parte do orçamento de uma superprodução é usada para a divulgação). Além do mais, é uma generalização perigosa que leva a acreditar que os críticos não gostam de filmes populares, o que por simples pesquisa é facilmente contestado.

Uma outra consequência é achar que filmes são separados em “filmes de arte” e “filmes pipoca”. Uma redução simplista que desconsidera que toda obra cinematográfica é formada pela mesma matéria-prima, mudando apenas como ela obedece à proposta. Achar que um blockbuster “não precisa ser complexo” se confunde com achar que ele não precisa ser bom. Por mais simples que ele seja e por mais que ele tenha como principal chamativo suas explosões, porradas e rostos famosos, posso te garantir que ele será tão melhor quanto for bem escrito e dirigido. Um bom roteiro não é ser complexo ou profundo, é ser formalmente bem escrito em sua simplicidade; e ser um bom diretor não é ser premiado e dirigir dramas, é saber contar uma história bem amarrada dominando as técnicas básicas da narrativa.

Mas esses críticos então deveriam ser imparciais.

Não existe crítica imparcial. Julgar uma obra implica que você, como ser pensante e composto de valores específicos e visões de sua época, estará sempre limitado à certa porção de sua parcialidade. O que importa não é que você seja parcial, e sim a forma como você se justificará em uma crítica. Crítica é sua subjetividade (ou “parcialidade”) + objetividade na fundamentação.

Eu não tenho que entender de técnica de cinema para gostar de um filme.

De fato, não tem. Seria completamente impraticável (e totalmente fora da lógica comercial) se todo o cinema existisse para ter como alvo uma minoria que entende. Já o crítico, precisa, ao menos, saber o básico sobre o material que pretende julgar. Ora, é evidente que se você pretende fundamentar sua opinião sobre o último lançamento, é preciso que você seja capaz de usar os elementos da linguagem para tal. Quem você julgaria mais capacitado para criticar um livro, um crítico literário ou alguém que leu dois ou três livros? Lembre-se, não é questão de gostar. Não importa qual o seu nível de conhecimento, toda obra de arte surtirá um efeito e você e ninguém tem o poder de questionar seu gosto. O que estamos falando é da capacidade de analisar uma obra e usar seus mecanismos de linguagem para defender qualquer que seja sua opinião.

Então que te dá o título de crítico?

Formalmente, ninguém. Não há faculdade de crítica (ao menos por enquanto). Mas há alguns pré-requisitos intuitivos para quem pretende a criticar. É necessário que você tenha uma base (por menor que seja) sobre cinema (fotografia, roteiro, direção, som, narrativa, história do cinema) e que assista sempre a muitos filmes, de todas as épocas e locais. A bagagem cinematográfica permite que você enxergue um panorama maior sobre o lugar de cada obra enquanto produto isolado e representação de uma época. Quanto mais você fizer isso, mais terá as ferramentas para fazer com que seu leitor leve em consideração sua reflexão e seu convite para o debate (lembre-se, não é preciso que concorde).

Mas então ninguém pode falar sobre filmes em sites e vídeos sem estudar cinema?

Claro que pode. A melhor coisa do alcance proporcionado pela inclusão na internet é a possiblidade de cada um fale como quiser sobre a paixão que o cinema exerce em cada um. Cada um é livre para abordar os filmes da maneira como quiser e com o púbico que quiser. Mas crítica tem sua definição história e seus pressupostos. Dizer que ela exige conhecimento básico em cinema não é arrogância e nem prepotência, é simplesmente um fato. Lembre-se, você não precisa ser crítico para expor sua paixão pela arte (como seria sem graça o mundo se assim fosse), mas precisa conhecê-la para ser crítico.

Em tempos de guerras e declarações gratuitas de ódio na internet, lembre-se que aquela crítica que, por ventura, fale mal do filme que você gostou não está lá para te ofender ou te julgar. Ela não quer você a siga ou que concorde com ela. Ela só está lá para provocar uma reação.

Sim, existem muitos críticos ruins ou que se intitulam assim sem demostrarem o mínimo dos requisitos (consequência dos tempos atuais), mas aqueles que tem paixão pelo que fazem e investem tempo para tal, o fazem porque tem a ânsia de compartilhar isso com todos. A imagem de que um crítico está lá para odiar o filme é datada e tola. Mais do que ninguém, ele é um espectador que torce para que todo filme seja bom (até porque ele gasta mais dinheiro no cinema do que a maioria).

Não encare a crítica como uma inimiga, mas sim como uma possibilidade de “conversar” com alguém sobre as coisas que você gosta. Se não gostar do que leu, tudo bem. Você provavelmente não vai passar pela vida sem que nenhum amigo jamais discorde de você.

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