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CRÍTICAS

Crítica – Homem com H

Crítica – Homem com H
  • Publishedabril 30, 2025

Um dos maiores mistérios dos nosso tristes anos de chumbo dos anos 1970 é que em meio a uma sociedade que pregava a moral, bons costumes e uma família com cidadãos de bem, foi que um cara andrógino, de cara pintada, cabelo comprido, voz fina, que se apresentava semi-nu e rebolando sem parar tenha conquistado o Brasil. Ney de Souza Pereira, ou melhor Ney Matogrosso, com suas performances ousadas nos Secos e Molhados, foi um dos maiores vendedores de disco no Brasil, e isso em meio a um regime com censura e brucutus por todos os lados. 

A história dele, após o ultra sucesso da banda, todos conhecem, com Ney há mais de 50 anos lotando shows, com espetáculos de qualidade ímpar e com voz, físico e requebrados irretocáveis. Acredito que a história de todo o ser humano daria um filme e a do Ney até demorou para se tornar. Coube a Esmir Filho a missão de fazer a homenagem a esse artista transgressor e libertário que o Brasil ama, e com Homem com H (2025) que estreia essa semana, a dívida está paga, com um filme à altura da importância de Ney Matogrosso.

O filme conta a história do artista desde a sua infância no Mato Grosso, com pai militar e autoritário e uma mãe amorosa. Sua decisão de sair de casa, a sua passagem pela aeronáutica, a vida nômade por Brasília, onde mostrava seu talento em corais, São Paulo, onde fazia artesanato no auge do movimento hippie e no Rio de Janeiro, quando tentava ser ator e acabou conhecendo Gerson Conrad e João Ricardo, que sacudiram o país montando os Secos e Molhados, grupo que foi um fenômeno dos anos 1970 e mostrou Ney ao Brasil. Sua carreira solo sempre polêmica e transgressora, suas performances sensuais e seu jeito livre de ser, com seus amores, aventuras sexuais e amor à vida e à arte, driblando preconceitos, censura oficial a própria aceitação do pai, que sempre foi uma sombra na sua agitada vida.

Tendo como base o livro de Júlio Maria Ney Matogrosso – A Biografia, Esmir Filho escreve e dirige a aguardada cinebiografia do artista de Bela Vista no Mato Grosso, hoje no Sul. O primeiro grande mérito do cineasta é respeitar um senso de cronologia dos fatos. A cinebiografia segue um padrão estético sem grandes invenções de montagem e ousadias rebuscadas. Mas viajamos sim, com o Ney, desde sua infância nos anos 1940 no interior do estado do Centro Oeste, quando aquele menino ousado e desafiador sabia que o mundo era mais que aquela caserna em forma de lar. E outro golaço do realizador foi mostrar sem pudor em vigorosas imagens as descobertas de desejo do menino, desde a época do exército, até o ensolarado e alto astral Rio de Janeiro do fim dos anos 1970. Época em que a cultura fervia, o ânimo era outro com a anistia e corpos à mostra se cruzavam atrás de prazer. Uma turma sem preconceitos, aberta a  experiências, movidos por tesão e liberdade, num modo hedonista de ser e viver. Em suma, nada de chapa branca, mas sim muita verdade na tentativa de nos apresentar o habitat de Ney.

O  destaque da direção de arte da película é de um prazer visual único. Pelo passar das décadas, o perfeccionismo dos detalhes impressiona e nos transporta por aqueles anos de transgressão visual e de atitude vibrante do inquieto Ney Matogrosso. Os números musicais do filme são excelentes e fazem um apanhado competente do melhor que ele produziu entre 1971 até meados dos anos 1980. Rico em detalhes, coreografias precisas e muita música, hipnotiza o espectador. E é claro que a atuação soberba de Jesuíta Barbosa é tão vigorosa que em certos momentos vemos e sentimos  a presença de Ney na telona. Seus trejeitos, semelhança corporal, olhar penetrante, com os olhos irresistíveis. E também nos transpassa como era a personalidade zen do cantor, muito diferente das quatro paredes onde virava, como ele mesmo falava bicho, com parceiros e parceiras, e no palco, local em que literalmente se despia de qualquer pudor e se entregava de corpo, suor, expressão corporal e alma, com sua magnética que tantos idolatravam. E Jesuíta entrega tudo isso, ele é intenso mas sabe se controlar, se fecha em momentos de reflexão com suas dores pessoais nunca expostas ou caindo para pieguice e sabe ter o poder de uma bomba com seu talento extraordinário. Uma atuação de gala do talentoso ator pernambucano.

Talvez o único porém do filme, apesar de como o próprio Ney diz, que foi tudo verdade, é a relação com o autoritário pai (Rômulo Borges) que o persegue como um fantasma. O artista tem dificuldade de se libertar daquela imagem opressora, usando apenas como arma contra isso sua eterna provocação ao pai, através da arte e o choque que ela provoca. O filme explora demais essa relação, que às vezes chega a cansar, mas tem um desfecho emocionante com direito a O Mundo é um Moinho, de Cartola, na voz do cantor. A relação dele com Cazuza e com seu companheiro Marco de Maria também é fielmente retratada, e a cruel epidemia de Aids é muito bem apresentada, com um a um de seus amigos e amores sucumbindo à doença, tendo uma cobra se arrastando numa cama como simbologia do perigo que estava a chegar e dar medo àquela festa de liberdade sexual e vale tudo da época. Momento também muito bem retratado numa cena no fim dos anos 1970, num Rio de Janeiro em que homens e mulheres se entregavam com beijos, abraços, trocas de parceiros e sexo, numa alegoria do fim da década de 1970, antes do pesadelo da Aids.

Uma curiosidade que tenho é como muitos fãs de Ney Matogrosso, que se encantam com suas performances magistrais em palcos brasieliro, aliadas a sua lindíssima voz, vão enfrentar imagens tão cruas de amor entre homens e mulheres de maneira sem censura, mesmo sabendo que Ney nunca negou nada e aliás nunca levantou bandeira de nada. Um filme com uma temática Queer para um artista tão amado e popular, torço pelo sucesso, mas nesses tempos difíceis temo pelo pior…

Homem com H não pretende nos mostrar quem é Ney Matogrosso, esse, ao contrário de um dos seus amores, o Cazuza, na vida era reservado e discreto, nada de exagerado. O filme nos apresenta em forma de homenagem um cara à frente do seu tempo, que não tinha medo de exposição, de arriscar, de apresentar com sua voz e torso quase sempre nu, que era bicho, era gente, era amor, tesão e principalmente, Artista, e com A maiúsculo mesmo.

Written By
Lauro Roth