A definição do que é um filme cult varia um pouco de acordo com as diversas fontes e maneiras diferentes pela qual cada filme foi classificado. Erroneamente costuma-se muito dizer que um filme ser “cabeça” ou fugir das narrativas tradicionais são uma obrigatoriedade na denominação. Na verdade, a palavra remete a “cultuado”, mais especificamente uma obra que se tornou adorada por um nicho específico, sendo que muitas delas não ganharam reconhecimento na época em que foram lançadas, mas receberam o status com a condição do tempo. Portanto a temática e a estética não são exatamente elementos exclusivos, basta que a obra seja reverenciada por qualquer motivo, assim como Evil Dead (Sam Raimi, 1981), Rocky Horror Picture Show (Jim Sharman, 1975) e Blade Runner (Ridley Scott, 1982).
Além dos requisitos citados acima, aparentemente a qualidade também não é essencial. Basta observar uma pérola cinematográfica lançada em 2003 que fica mais fácil entender o que é necessário para que algo seja cultuado. The Room é o resultado da mente de Tommy Wiseau, que dirigiu, escreveu e protagonizou o filme, além de produzir e fazer o marketing com o próprio dinheiro. O resultado ficou conhecido como “o pior filme de todos os tempos”, “o Cidadão Kane dos filmes ruins”, entre outras elogiosas denominações. De tão ruim assim, foi ganhando uma admiração do público, que morria de rir do fracasso da história cuja essência deveria ter o estilo de um Tennesse Williams (famoso dramaturgo americano), como era a intenção do próprio Wiseau, mas acabou mesmo como uma comédia involuntária cujas falas e sequências passaram a virar uma espécie de piada no meio cinéfilo. Isso tudo fez com que, 14 anos depois, o filme ainda seja exibido anualmente em vários lugares, contando com uma base de fãs que mantém viva a história sem pé nem cabeça do protagonista Johnny.
Pois toda a mítica envolvida pelas circunstâncias também resultou em The Disaster Artist: My Life Inside The Room, the Greatest Bad Movie Ever Made, livro escrito por um dos atores do filme, Greg Sestero, e o jornalista Tom Bissell, que conta a história por trás dos bastidores do filme e que agora foi adaptado para uma ficção dirigida e protagonizada por James Franco. Na trama, Tommy Wiseau (Franco) é um aspirante a ator que decide fazer o próprio filme, de maneira totalmente independente, depois de conhecer o próprio Greg Sestero (Dave Franco), também novato que busca alavancar a carreira em Los Angeles. De origem misteriosa, tanto na nacionalidade quanto nos recursos financeiros, o diretor parece ser o retrato do artista que vai atrás do seu sonho e consegue reunir uma equipe completa prestes a adentrar no sucesso de Hollywood, quando, na verdade, demostra não ter nenhum domínio ou conhecimento sobre a sétima arte, o que começa a deixar todos os envolvidos no projeto céticos quanto ao seu pretenso “talento”.
Como disse em várias entrevistas que deu nesta temporada de premiação, James Franco encarou a história de Wiseau como uma verdadeira inspiração e é dessa maneira que o ator decidiu basear sua adaptação. Por mais que o humor inevitável brote da natureza da trama, a chacota jamais aparece por si só. Sendo assim, por mais que a falta de talento do personagem seja evidente e o absurdo das situações vivenciadas ganhem um aspecto de uma comédia, Artista do Desastre tem um elemento tragicômico constante. Sim, o filme é definitivamente uma comédia, mas assim como as melhores, usa a subversão para comentar alguma coisa mais séria (ou inspiradora) que paira pela superfície.
Se há algo de tragédia que pode ser dito aqui, ela vem da própria figura de Tommy Wiseau, que, apesar de ser um sonhador nato e honesto quanto às suas aspirações, não tem o mínimo de talento que julga possuir. É por isso que essa história corria o risco de se transformar numa comédia que se apoiaria somente na zombaria, quando, na verdade, a usa para tratar com carinho uma trajetória que provavelmente ninguém gostaria de percorrer. Pode-se afirmar tudo sobre o protagonista, menos que ele não compartilha os mesmos sonhos e a paixão pelo cinema que todo artista bem-sucedido já teve. Você consegue imaginar algo mais triste que ter certeza que só pode fazer uma coisa em toda sua vida e não ter a menor habilidade para fazê-la?
Para que essa trajetória tenha a capacidade de despertar nossa empatia, seu protagonista também não poderia correr o risco de ser uma caricatura. Aliás, o curioso é que o sujeito é sim, de certa forma, uma caricatura ambulante – e basta observar qualquer coisa sobre ele para ter certeza –, mas Franco faz questão de não deixar que ele seja somente uma piada, e sim que contenha uma profundidade necessária para que o elemento de tragédia esteja sempre presente. Assim, ao mesmo tempo em que ele demostra uma sensibilidade tocante – embora quase sempre inocentemente tola, como podemos ver na maneira como ele professa sua admiração por James Dean – também é imaturo e egocêntrico, se mostrando incapaz de lidar com as consequências dos próprios atos e, principalmente, da maneira como está fadado a ser constantemente julgado pelo mundo que o cerca. Portanto, por mais que as risadas sejam nossa reação principal, sentimos ao mesmo tempo raiva e pena da instabilidade de Wiseau, o que acaba enriquecendo a experiência além de uma paródia de personagem real.
Grande parte do sucesso da obra se deve a James Franco (mais o ator do que o diretor), que emula com perfeição todos os trejeitos de Tommy, além de projetar uma carga pesarosa nas expressões do personagem que contribuem para o magnetismo que ele causa no espectador. Por mais que várias das características pareçam artificiais para quem nunca viu o personagem real, elas são idênticas a ele e estão organicamente presentes tanto ao vermos os momentos mais engraçados como os que ele esbraveja sem motivos com sua equipe. E falando na equipe, o elenco do filme se diverte imensamente nos seus personagens: Dave Franco como o melhor amigo Greg, Seth Rogen como supervisor de roteiro, Alison Brie como… bem, namorada do Greg e Ari Graynor como a atriz que faz o “par romântico” mais confuso da história de The Room. Fora esses, ainda há participações especiais divertidíssimas que compõe os personagens hilários da “obra” escrita por Wiseau (recomendo se deixar surpreender ao invés de pesquisar todo o elenco).
E quem faz o filme dar certo é realmente seu elenco e a maneira como o roteiro sabe trabalhar o humor como catalisador dos conflitos, mesmo os mais dramáticos. Na direção, Franco não chama atenção para si mesmo e faz um trabalho correto e mais preocupado em se deixar levar pela história e pelo personagem do que em florear a narrativa com uma técnica mais apurada. E nem há nada de errado nisso, o que facilita ainda que o filme funcione pelo humor situacional e pela já mencionada veia tragicômica – e, sem dúvida, é mais pelo cômico que a narrativa encontra sua força, já que quando o drama aparece por si só o filme perde um pouco de força pelo fato de Franco não ser muito sutil quando apela para conflitos externalizados, extraindo melhor a emoção quando ela vem na incapacidade do personagem em perceber o próprio ridículo quando imagina estar sob controle.
Mesmo construído a partir de uma história sobre um filme ruim, Artista do Desastre tem honestidade suficiente para ser um tributo hilário (mas tocante) a um cineasta que queria ser reconhecido como um verdadeiro artista – o que me lembra também de outro filme com temática semelhante: Ed Wood, de Tim Burton, que conta a história sobre a paixão pelo cinema de um dos piores diretores de todos os tempos. Afinal, assim como Wiseau e o próprio Ed Wood, a inspiração vem de todos os lugares e, independente de gerar resultados positivos ou negativos, dificilmente seria acusada de ser falsa.
E quem sabe o que o tempo guarda? Como também diz recorrentemente James Franco, há inúmeros filmes ruins que ninguém nunca mais verá. Se até hoje The Room é discutido, é porque a arte trabalha de maneiras bem misteriosas mesmo…
Nota:
[yasr_overall_rating size=”medium”]
Trailer
https://www.youtube.com/watch?v=UtzsorjuK-o
Data de lançamento: 25 de janeiro de 2018 (1h 44min)
Direção: James Franco
Elenco: James Franco, Dave Franco, Seth Rogen, Alison Brie, Ari Graynor, Jacki Weaver, Josh Hutcherson,
Sinopse: Baseado no livro “The Disaster Artist: My Life Inside The Room”, de Greg Sestero e Tom Bissell, o longa, dirigido e estrelado por James Franco, vai tratar sobre o processo de produção do filme The Room, de 2003, considerado um dos piores longas da história do cinema.