Show de Maria Bethânia em Porto Alegre

Praticamente um fenômeno. Em maio deste ano foram abertas as vendas dos ingressos para o show de Maria Bethânia no Araújo Vianna. Ingressos esses que foram vendidos em tempo recorde, esgotando em questão de horas. Devido a essa intensa procura, uma nova data foi disponibilizada e também teve procura enorme, mostrando a força e a idolatria da filha da Bahia, filha de Dona Canô e uma das maiores cantoras da história da música brasileira. Enfim, chegou agosto, e é claro, o NoSet foi acompanhar essa volta da Abelha Rainha aos palcos porto-alegrenses no templo do Araújo Vianna, na noite de sexta passada, no seu segundo show em terras gaúchas.

Com dezenas de coberturas realizadas, confesso que essa da Bethânia foi uma das mais complexas. Cheia de exigências como proibição de imprensa nas primeiras músicas para fotografias, barraquinhas de lanches fechadas, proibição de seu público de ficar nos corredores e breu total nas laterais, foram algumas das exigências da cantora, que assina a direção musical do show. Quase que pontualmente, depois de três toques de sirenes (até isso foi novidade) sua banda, com Rômulo Gomes no contrabaixo, João Camarero (violão de 7 cordas), Paulo Dafilin (violão, viola e guitarra), Marcelo Calder (piano e regência), Marcelo Costa dividindo a percussão com a idolatrada Lan Lhan, adentra ao palco abrindo alas para chegada de Bethânia. De pés descalços e com seus patuás, abre o show com Gema, sucesso do seu álbum Talismã, de 1980, fazendo a plateia aplaudir exaustivamente. Depois faz uma menção a Como 2 e 2 e pede palmas para Gal Costa, sua irmã de carreira e espiritual. Segue o baile com Índio, do irmão Caetano, com um refrão com ênfase na percussão. Em Sangrando, do mestre Gonzaguinha, Maria mostra todo sua expressão vocal, sem exageros, numa linda interpretação e continua a homenagem ao compositor em mais um show vocal em Explode Coração, do disco Álibi, de 1978, o primeiro que uma cantora conseguiu vender mais de um milhão de cópias no Brasil, tornando Bethânia enfim popular.

Mantendo a pegada popular ela senta numa espécie de caixote e emenda a linda Gostoso Demais, de Dominguinhos e Nando Cordel, sucesso dos anos 1980. Com um som impecável, arranjos afiados e interpretações únicas, o show de Bethânia é praticamente como ouvir música em casa, mas ao meu ver ainda tem o certo distanciamento que os cânones da MPB hoje têm do seu público. Por mais que tenha um repertório popular, ela não consegue se identificar com a massa, é fria demais, rígida e esse formato de “espetáculo” que a MPB brasileira criou, não tem espaço para improviso, pra novidade, é muito engessada e ensaiado e causa uma barreira entre artista e público que não se vê em artistas de pop, rap, rock ou de ritmos mais populares. Enfim, por mais que para mim não emocione, deve encantar as quatro mil pessoas, que sentadas e quase estáticas, contemplavam a diva Bethânia. Mas voltando ao show, ela manda um Belchior, com Galos, Noites e Quintais antes de talvez seu sucesso popular mais recente, Fera Ferida, da dupla Roberto e Erasmo, essa sim empolgando a galera. Um dos grandes méritos de Bethânia foi quebrar o preconceito da elite da música popular brasileira com a dupla, abrindo caminhos e gravando muita coisa dos dois compositores. Vai Ficar na Saudade, do mestre Benito di Paula, vem na sequência (mais um flerte com o popularesco), mas é com Vem Quente Que Eu Estou Fervendo, de Tremendão, que emociona e homenageia o gigante, inclusive com uma foto dos dois no telão do fundo. Sobre o palco, diga-se de passagem, minimalista ao extremo, iluminação baixa e telão quase figurativo.

Mulheres do Brasil segue o show, linda canção do disco Maria, de 2000. Mas é com Yaya Massemba, do disco Brasileirinho, de 2003, que presenciamos uma das cenas mais constrangedoras nos palcos brasileiros. Em certo momento da música, Maria pára a execução e xinga publicamente um dos seus músicos, dizendo que uma canção tão importante dessas e em respeito ao seu público, tinha que ser melhor executada. Então, a banda tenta reiniciar de todas as maneiras, até chegar ao ponto que Bethânia consegue voltar a cantar e a galera meio que instintivamente aplaude. Aplaude a humilhação pública de um músico, comandada por sua chefe, momento desagradável e que com certeza virou o fio do show, tamanha deselegância da cantora.

Findada a treta no palco, ela segue com Cálice (que poderia servir como ordem dela para o músico…), do Chico Buarque, emenda Amor de Índio, da dupla Ronaldo Bastos e Beto Guedes, e segue com Balada para Gisberta, com mais um show de interpretação da cantora, mas maculado pela sua atitude de palco. Outro ponto negativo ao meu ver, mas que pontua a tal definição de espetáculos, é que cada canção é picotada e já emendada com outra, transformando o show num imenso pot-pourri, e que quando o povo aquece e quer cantar ela já vai para outra, mas enfim, o show é dela, de Maria Bethânia.

Essa picotagem de sucessos continua com Negue, outra do seu antológico disco Álibi, composição de Adelino Moreira, quase que emendada com Volta Por cima, samba de Paulo Vanzolini que consegue dar uma animada na quase estática plateia.

No terceiro ato do show interpreta, através da música Reconvexo, feita especialmente pra ela pelo mano Caetano, canções como Imbelezo Eu e Vento de Lá, De Santo Amaro a Xerém e Quixabeira, desfilando sua baianidade e sempre voltando ao Reconvexo, ali foi o primeiro momento que a tímida plateia levantou, cantou e dançou com a cantora.

Tá Escrito, do Grupo Revelação, tem uma singela interpretação da diva, mostrando que sempre está antenada nas quase novidades e o quanto seu repertório é eclético. E para finalizar, comanda um mini baile de carnaval com clássicos como Ala Lá Ô, Chiquita, A Filha de Chiquita Bacana e Chuva Suor e Cerveja, mas claro, tudo no estilo elegante e comedido da cantora, pra não dizer blasé e distante. Ainda tem tempo pra encerrar cantando o refrão do hino O Que É O Que É, de Gonzaguinha, saindo de cena e deixando a banda com suas melodias e batucadas (Lan Lahn dando seu show e segundo a cantora, participação luxuosa da percussionista) encerrando a pouco mais de uma hora de espetáculo.

Não podemos negar o talento incrível de Bethânia. Seu timbre de voz no alto dos seus 77 anos continua impecável, sua presença teatral ainda está intacta em excelência e seu repertório é uma aula, ou melhor, uma viagem de música brasileira de verdade, além da banda magistral que a acompanha e que faz tudo acontecer, mesmo tomando bronca no palco. Mas confesso que vi uma certa frieza da artista, um show quase protocolar, sem alma, robótico, de uma artista tão idolatrada, que mesmo com 60 anos de carreira e sabendo fazer esse sincretismo musical entre o clássico e popular, abrindo portas para todos, ainda não aprendeu, ou espero que seja ao menos naquela noite, a se entregar a seu povo, enfim prefiro ouvir meu CD de Álibi, entre outros da cantora, que acompanhar ao vivo. Ao menos me emociono, me solto mais e não corro risco de ver os deslizes emocionais da temperamental lenda viva da música brasileira.

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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