Os Mestres: Charles Master e Nei Van Soria apresentam seus clássicos em Porto Alegre

Existiu um tempo, em um passado distante, em que um certo rock feito no Rio Grande do Sul, no embalo do Brock, mudou a forma como a juventude gaúcha passou a consumir música. Esses tempos idos se chamavam os anos 1980, onde uma efervescência cultural tomou conta do Estado, principalmente de Porto Alegre, e bandas como De Falla, Replicantes, Engenheiros do Hawaii, Garotos da Rua, Os Eles, Nenhum de Nós, TNT, Cascavelletes, entre outras, ousaram criar uma música jovem com características urbanas e modernas, dando pólvora para o termo “rock gaúcho”. Dessas bandas, algumas ficaram, alguns integrantes já não estão entre nós, mas no embalo da nostalgia, sexta passada, no Araújo Vianna, vimos uma reunião de dois ícones daquela era mágica. Charles Master, peça fundamental do seminal TNT, e Nei Van Soria, que chegou a fazer parte do TNT, mas fez história com os hoje cults Cascavelletes, uniram as forças e os inúmeros hits para proporcionar um show marcante no templo da música de Porto Alegre. E o NoSet estava lá para conferir essa noite que tinha tudo para ser histórica.

Falando em história, a noite de quinta para sexta foi marcada pela passagem de um ciclone em terras gaúchas, causando morte e destruição, e números históricos de volume de chuva. Mesmo com todas essas intempéries da natureza, a noite de sexta, já sem chuva, recebeu um ótimo público, que talvez se tivéssemos numa noite normal, seria maior ainda. Mas como diria o Tim Maia: nem que chova canivete esse baile vai rolar, e rolou. Para abrir a noite, tivemos a banda Kiko Prata e os Reluzentes, com seu pop estilo Reação em Cadeia, e um vocal (o Kiko), uma mistura de Beto Bruno com Jonathan Correa no visual e voz. Um show eficiente e honesto, sem novidades, mas bem executado pela banda.

Então, por volta das 21h45min, a esperada dupla Nei Van Soria e Charles Master entra no palco. Nei com uma guitarra e Charles com um violão em punho, abrem os trabalhos com uma música solo do Nei, Isso Inclui Você. Mas a chapa começa a esquentar na segunda com Nunca Mais Voltar, sucesso do TNT de 1991, essa cantada por Charles. Jessica Rose, clássico dos Cascavelletes, segue o baile e levanta a plateia de vez, com destaque para o telão no fundo do palco, com imagens representando as canções.

A Irmã do Dr. Robert, clássico do TNT, segue o baile, com uma plateia animada cantando junto. Plateia com saudades dos anos 1980, muitos pais levando os filhos para mostrar o quanto era mágica e o que fazia a cabeça dos jovens daqui, hoje adultos, era também música feita por gente daqui. O Tempo segue o set, essa canção do clássico disco solo do Nei, O Jardim Inglês, mas é com Morte por Tesão, clássico pornô rock dos Cascavelletes, com direito a imagens de Christopher Lee como Drácula no telão, que a galera delira. Identidade Zero, inspiradora e clássica canção do TNT do seu primeiro disco, também mantém o clima de nostalgia e emoção em pé. Charles depois emenda uma de sua carreira solo, Ninguém é Perfeito e ainda de bem com o show, canta a parceria dele com o Armandinho, Outra Noite que se Vai, numa bela versão.

Destaque pra banda, além de um Nei esbanjando elegância e tocando cada vez melhor, Vinicius Silveira, excelente guitarrista, Leandro Schirmer, na bateria, e Juliano Pereira, exímio baixista, que executava nota a nota as belas linhas de contrabaixo originais das canções. Susie, outra do Nei, segue o baile, mas a casa vem abaixo é com Moto, dos Cascavelletes, com a galera cantando junto os versos: “Deixa eu andar na sua moto / mas quem vai na frente é você”. Êxtase geral! O show ia bem até o momento, mas lá pela metade, no trecho acústico, o Senhor Charles Master, nitidamente alterado, começou a atrapalhar. No clássico Estou na Mão, teve problemas com sua gaita de boca, se irritou. Seu violão apitava e sua voz sumia, ou ele esquecia de cantar. Nesse momento desplugado ainda cantam o sucesso Carro Roubado.

Mas é na volta das guitarras que a coisa complica. Gata Maluca, do TNT, Charles quase não consegue cantar, atravessa as músicas, erra notas, mas Nei ainda com paciência tolera os melindres e estragos do Charles. Em Ana Banana Charles Master, de guitarra em punho, atravessa a plateia pelos corredores do auditório e Nei segura a música sozinho. No clássico hino do rock gaúcho Não Sei, com a plateia em êxtase, Charles consegue atrapalhar bastante, por mais que a banda e Nei tentem consertar. Uma pena que, por mais rock and roll que possa parecer a atuação do Charles, as pessoas queriam ver um show competente, o valor nostálgico e o caminhão de hits da dupla e das bandas deles. Tinha tudo para ser uma noite sensacional, mas a pseudo iconoclastia, estrelismo e excessos do grande Charles Master fizeram o show perder a mão.

Ainda tinha o bis e Nei Van Soria, com sua classe de lorde, tocou uma versão linda e acústica de Lobo da Estepe no meio da plateia, em um dos momentos mais lindos do show. Charles Master voltou e mandou Charles Master, música do TNT, que tinha tudo a ver com o momento: cuidado com o Charles Master, era tudo o que a banda e parte da plateia tinham que ter naquela noite. Jardim Inglês é executada com maestria por Nei, antecedendo outro hino da canção gaúcha, Sob um Céu de Blues, essa numa emocionante versão, com arranjo preciso, solos melódicos de Nei e Vinicius, e fez todo mundo cantar e, por mais que Charles tentasse atrapalhar, a música fechou com estilo o show. Ainda tinha espaço pra Cachorro Louco, com Nei Van Soria e o baixista Juliano Pereira, já pulando da barca, deixando Charles, o baterista e o guitarrista tocando sozinhos, ou estragando (o Master), mais uma das emblemáticas músicas do rock gaúcho. Digamos que um final constrangedor que foi piorado com Charles cantando sua versão de Não Sei, dessa vez com os músicos abandonando o palco e ele tentando, à sua maneira, loucura e imposição, comandar uma plateia muito paciente com suas transgressões.

Concluindo, uma noite que tinha tudo para ser mágica e inesquecível, com um amontoado de sucessos do rock gaúcho, teve gosto de amargor. Mesmo com a competência da banda, Nei Van Soria segurando a bronca, uma produção e tanto (com direito a câmeras gravando o show), um público lotando o Araújo Vianna, mesmo num caos na cidade, infelizmente os problemas que Charles causou, tretas no palco, excessos e estrelismo prejudicaram demais o espetáculo. Para parte da plateia ficará no folclore, mas a impressão que deu é que Nei Van Soria convidou aquele amigo problemático pra festa, sem ter a mínima ideia que ele poderia estragá-la, enfim, Os Mestres, um show que tinha tudo pra ficar na história, ficou pela metade, e se não fosse a classe do Nei Van Soria e a ótima banda, teria sido um naufrágio geral. Uma lástima. 

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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