Encontro anual do Cachorro Grande em Porto Alegre celebra o dia do Rock

Nas comemorações dos 250 anos de Porto Alegre, ano passado, em meio ao baile da cidade, festas e uma efervescência que comemorava o começo do fim da pandemia do Covid, no Araújo Vianna, templo da música porto-alegrense, em sua nave pousada no Parque da Redenção, tivemos a primeira reunião do Cachorro Grande. Talvez uma das últimas bandas realmente de rock que atravessaram as fronteiras do estado para brilhar pelo Brasil, chegando ao mainstream, esse encontro de sucesso foi o primeiro de uma nova tradição que a banda se propôs a criar: todo ano fazer um show na capital. O destino (e as datas prévias) não quis que fosse no dia do rock, o 13 de julho, mas um dia depois desse, o Cachorro Grande se reuniu novamente e mais uma vez no Araújo. Comemorando a edição em vinil do seu ótimo disco de estreia, a banda promete um espetáculo repleto de hits, e é claro, o NoSet foi conferir os viscerais conterrâneos e conta aqui como foi essa noite de rock.

Com um excelente público, muitos usando boinas, visual mod, casacos pesados e moda brechó, emulando uma Porto Alegre do início do século 21, entrando como de costume bem atrasado, preferindo beber na rua do que dentro do auditório, mesmo com os 10 graus de temperatura (mais uma tradição dos gaúchos, curtir a rua e beber lá mesmo com o clima pouco ameno e entrar em cima do laço no show), com um atraso de mais de 40 minutos, a banda subiu ao palco umas 21h40min. Beto Bruno, Marcelo Gross, Gabriel “boizinho” Azambuja, Pedro Pelotas e substituindo Rodolfo Krieger que hoje mora em Portugal, o baixista que acompanha o Gross na sua carreira solo, Eduardo Barreto. Logo de início a banda resgatou um dos seus primeiros hits, do disco de 2001, Lunático, já com a casa tomada de emoção e cantando junto. Hei Amigo, do disco de 2004, mantém a energia única da banda e Conflitos Existenciais, de 2007, do disco Todos os Tempos, fecha a primeira trinca de músicas.

Como destaque negativo podemos falar do som. Extremamente alto e embolado, numa falsa ideia de que quanto mais alto é mais rock and roll. E não é choro, são as condições do local mesmo, a equalização no Araújo tem que ser boa pra curtir sem grandes problemas auditivos um show, e outra, a questão da falta de ensaio. A banda está parada faz mais de ano e alguns erros são bem perceptíveis, mas não podemos negar a visceralidade da apresentação. Os caras se entregam e têm uma química incrível, Gross e Bruno são nossa dupla mais rock and roll do estado e tem uma vibração contagiante. Boizinho manda super bem na bateria e Pelotas com suas frases robustas é um dos maiores pianistas do rock brasileiro. Até o logicamente discreto Barreto, consegue entrar na alma canina da banda para delírio do público que vibra, canta, bebe e curte o momento.

Segue a celebração, Desentoa, de 2005, Que Loucura, do disco anterior a esse, e a ótima As Próximas Horas Serão Muito Boas, do mesmo e homônimo disco. Uma viagem sem volta ao passado da era em que a banda era uma das mais conhecidas do Brasil. O Bom Brasileiro, uma das mais famosas dessa época, quando os cachorros latiam nas rádios e televisões brasileiras quase diariamente, faz mais uma vez a galera cantar junto. A plateia animada do início ao fim, ninguém sentava mais e um detalhe: pessoal foi para curtir o  show, poucos celulares ligados e muita vontade de viver o momento de nostalgia do encontro anual.

Do disco Cinema, e continuando a viagem pelos álbuns da banda, eles atacam de Alegria Voltou, colocando o povo pra dançar. Beto Bruno anuncia que recentemente ele, Gross e Boizinho perderam respectivamente cada um seu pai, e com a voz embargada, conta que a próxima canção seria dedicada a eles, e era a que eles mais gostavam, do disco de 2007, Roda Gigante, com uma emocionada interpretação da banda. Nessas horas os Cachorros já estava mais soltos do que nunca, Beto Bruno com garrafa de vinho na mão, a galera bebendo e celebrando o momento, o que uns podem achar rock and roll e atitude, outros podem achar falta de profissionalismo, enfim, era uma data solene, um encontro de velhos amigos com seu  público e às vezes um chute na bundamolice da música brasileira, com atitudes autênticas que o Cachorro demonstrou ser necessário e motivador.

Como Era Bom, do pouco compreendido disco Costa do Marfim, segue o baile, mas é com Debaixo do Chapéu, primeiro sucesso do primeiro disco, música mais Jupiteriana (inspirada no Júpiter Maçã) daquela fase inicial que a alegria toma conta de novo e lembramos da era em que os mods da Barros Cassal queriam dominar o planeta. Seguiram com Lili, do mesmo disco, depois de uma declaração apaixonada do Beto Bruno para sua esposa, e parecia que voltamos a 2000, 2001. Gross assume os vocais em O Que Você Tem e na maravilhosa Um Dia Perfeito, do celebrado primeiro disco, mostrando que a carreira solo dele o fez ser um grande vocalista também, mais maduro e seguro, além é claro, de um gigante guitarrista, criativo, com uma técnica pessoal sabendo tirar timbres maravilhosos, que misturam o passado e o presente. Um baita músico. Vai T Q Dá, de 2001, a banda simplesmente fica uns 10 minutos num clima de jam, improviso, psicodelia, ajudados pelas luzes e uma performance afiada do quarteto, Gross com seu feeling já exaltado aqui, Boizinho relembrando seus velhos tempos como um dos bateras mais enérgicos do estado, Barreto segurando as pontas e Pelotas dando seu show particular no piano e órgão, uma viagem sonora que mostra o quanto perdemos com o fim da banda.

Depois dessa aula de rock and roll, alto, ensurdecedor e quase insano, como deve ser, As Coisas Que Eu Quero Lhe Falar faz o aquece e ameniza o clima para o mega sucesso Sinceramente, do disco Pista Livre, cantada pela galera com alguns isqueiros levantados, lembrando como se fazia antigamente em baladas. Para tocar outro sucesso da banda Beto chama Duda Calvin, outra lenda daqui, vocalista do finado Tequila Baby, e juntos fazem um dueto na contagiante Sexperienced, um encontro de gigantes. Para encerrar o Cachorros Day a banda toca outro mega sucesso de 2005, Você Não Sabe o Que Perdeu. Nessa hora, com a galera em êxtase e a banda idem, começa a sessão The Who dos anos 1960, com direito a pedestais quebrados, bancos de bateria destruídos e pandeiros voando. Enfim, isso é rock and roll, coisa que o Cachorro Grande ainda sabe fazer muito bem. No fim, ainda tivemos a cena de Boizinho mostrando a bunda pra galera, findando a celebrada noite do Cachorro Grande.

Pode ter tido som ruim, mal equalizado, erros de quem fez poucos ensaios, atitudes condenáveis em uma sociedade que cada vez mais encareta o rock (e isso vindo de quem gosta do gênero), pode ser que a banda seja oportunista e se reúna para garantir as contas da segunda metade do ano, mas o que não podemos negar é que assitir o Cachorro Grande e não se contagiar, só sendo uma pedra. A banda esbanja energia, sincronia, tem uma simbiose com seus fãs (muitos vêm de longe para assistir) e com sua sonzeira alucinante, músicos excepcionais e um vocalista que já virou uma marca registrada, não tem como dar errado. Mas o principal é que o Cachorro Grande faz essa reunião para se divertir, reviver os momentos e entrega o show recheado de hits  para quem veio ver isso, não inventa, não faz birra e com sua atitude e resquícios de transgressão (nem que seja por uma noite), nos lembra o quanto o rock and roll é importante e Porto Alegre merece e sabe acolher seus cachorros prediletos.

 

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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