Daniela Mercury apresenta Baiana em Porto Alegre

No ano de 1992, um projeto do Museu de Arte de São Paulo, conhecido popularmente como Masp, organiza shows ao ar livre no vão do local. Os shows geralmente eram por volta do meio-dia, para dar oportunidades para a população na hora do almoço de conhecer novos nomes que se apresentavam por lá. Um desses nomes, literalmente, abalou as estruturas do Masp. Numas das edições do Som ao Meio-Dia, a baiana Daniela Mercury, com 10 anos de carreira musical e um disco gravado, aguçou a curiosidade de 30 mil paulistanos, provocando um engarrafamento monstro na região, deslocamento de força policial, devido à multidão e depois de menos de 40 minutos de show, ela foi aconselhada a sair do palco pela Secretaria de Turismo de São Paulo, que ficou com medo de tamanha multidão, pois os alicerces do local poderiam ser comprometidos. Essa literal abaladora de estruturas era Daniela Mercury, que no fim do ano lançaria o disco O Canto da Cidade, tornando-se a rainha do axé e umas das cantoras mais incríveis do Brasil nos últimos anos. E completando 40 anos de carreira, 30 anos do lançamento de O Canto da Cidade (o disco é de 1992, mas estourou no verão seguinte), Daniela comemora o feito com a turnê Baiana, fazendo shows pelo Brasil. Sábado passado foi a vez de Porto Alegre ter a sua visita, e é claro que a nave sonora do Araújo Vianna teve o prazer de receber a diva e mais uma vez o NoSet conta para vocês sobre esse momento histórico.

Pode ter sido pelo feriadão, o clima ruim, pouca grana, ou até ranço político, mas pouco mais de mil pessoas estavam presentes naquela noite no Araújo, mas como digo, azar de quem não foi, e por volta das 21h30min a cantora, vestida de preto em um palco minimalista, como uma entidade, surge no fundo entoando as primeiras estrofes de O Canto da Cidade, hoje um clássico da música brasileira. Daniela canta, dança, esbanja simpatia e ritmo, já levantando a plateia desde o início do show. Sem quase respirarmos, acompanhada por quatro dançarinos, ela emenda seu primeiro sucesso, Swing da Cor, do disco de 1991, mantendo o pique da apresentação que fecha aquele bloco com Música de Rua, de 1994, de quando ela já era a cantora mais famosa do Brasil.

Com a poderosa Mulheres do Mundo, do seu disco Baiana, de 2022, faz uma homenagem à força da mulher e depois presta sua homenagem às forças do mar com O Mar/Jeito Faceiro/Canto ao Pescador. Seguindo no balanço do oceano, interpreta As Rendas do Mar e com um jogo cênico, os dançarinos simulam o mar como um grande vestido com panos em um visual belíssimo. Feijão de Corda, de 1996, segue o set do show que é emendado com Oya por Nós, presente nos últimos shows da cantora. Vale destacar que Daniela fazia quase 17 anos que não cantava em Porto Alegre, sua emoção e a expectativa do público estavam em polvorosa e ela fala isso não como um lapso, mas como uma fase em que viveu, tocou pelo mundo todo, mas naquela noite marcava o reencontro com o povo do Rio Grande.

Com O Mais Belo dos Belos (A Verdade do Ilê), do seu disco de 1992, que rendeu disco de diamante para a cantora, faz o Araújo dançar em clima de nostalgia o samba reggae da canção, em uma volta sonora ao início da década de 1990. Depois, improvisa Dona Canô, de 1996, que segundo ela, não estava no seu script inicial. Com Crença e Fé, originalmente da Banda Mel, de 1991, Daniela viaja novamente no tempo com as raízes do axé, naquele momento que ele começava a dominar o Brasil e as paradas de sucesso.

Com Ilê Pérola Negra, Daniela faz um discurso forte sobre os pretos, sua força, religiosidade e alegria, em uma das músicas mais arrepiantes e contundentes do show. Com Você Não Entende Nada/Cotidiano Daniela volta às suas raízes, lá nos primórdios, quando misturou tradição e modernidade e conquistou tanto o povo quanto a crítica, cantando Chico, Caetano, mas com toques da então nova música baiana. À Primeira Vista, de Chico César, é aquele momento de ligar os celulares, iluminar a plateia e cantar o sucesso novelístico dela de 1996. Ainda tem tempo de improvisar e tocar uma versão da lindíssima Como Vai Você, de Antônio Marcos, só com voz e guitarra. E como esperado, a banda dela é uma magnitude incrível, com um time mais reduzido, principalmente na percussão, onde era conhecida por quase uma dezena de músicos, a banda agora está mais minimalista, mesmo assim não perde em nada a sonoridade marcante do repertório da cantora.

Chega o momento em que ela faz homenagens ao seus ídolos dos anos 1980, com medleys incluindo Tempo Perdido, da Legião, Raul Seixas lembrado com a Sociedade Alternativa, Maluco Beleza e Eu Nasci Há 10 Mil Anos Atrás. Homenageia com sua voz maravilhosa Elis Regina em Como Nossos Pais, e é claro, Roberto Carlos com Se Você Pensa e Jesus Cristo, fechando com estilo o momento.

No extra, Daniela Mercury, ao assumir a sua bixesualidade, depois o casamento com sua atual esposa, começa a levantar bandeiras de respeito ao movimento LGBTQIAP+, estimula a diversidade, o amor e a dignidade de todos. O que logicamente é ótimo, para uns virou uma provocação, ainda mais em um país dividido, o que fez ela perder fãs (ou que se achavam fãs), por sua coragem e honestidade. E em clima de diversidade, ela chama dois casais homossexuais e os abençoa num simbólico casamento. E logo depois entoa Nobre Vagabundo, pra delírio da plateia, coroando aquele momento mágico no palco do Auditório Araújo Vianna.

Segue a micareta da Daniela com Vai Chover e Rainha do Axé, onde mostra na letra toda brasilidade, religiosidade afro e carnaval, homenageando nomes históricos, botando todos pra dançar. Mantendo a pegada da boa terra, canta o clássico de Gilberto Gil, Toda Menina Baiana e depois a sua homenagem ao recém falecido, mas imortal, José Celso Martinez, com a canção Macunaíma. Isso já eram passadas duas horas de show e a energia cativante de Daniela ainda estava no auge, e sua simpatia fez muita gente subir ao palco e entregar presentes para cantora, naquele momento que a artista agradece e recebe de braços abertos quem realmente importa, que é seu público, tanta diferença com algumas conterrâneas de Daniela… enfim, segue o jogo! E ele continua com o sucesso de 2001, Mutante, mas é na parte final que Daniela transforma o Araújo Vianna num grande trio elétrico, elencando sucessos como Banzeiro, a contagiante Rapunzel, a sugestiva e propícia para o momento Trio Elétrico, junto com Maimbê Dandá, a provocante Proibido Carnaval, quando ninguém mais sentava, em uma grande festa inesquecível pra quem estava presente. Encerra com o início de tudo, tanto do show ou da sua carreira, a trintona mas ainda arrepiante, O Canto da Cidade, música que virou o fio da carreira da artista, a transformando na rainha do axé.

Daniela Mercury nos proporcionou um show alegre, contagiante, político, com posições fortes, exaltando a democracia, o respeito e o amor, e tudo isso representado por muita arte, dança, expressão corporal, ritmo, e é claro, mais de 25 sucessos que marcaram esse Brasil nos últimos 30 anos. Tudo isso comandado por uma cantora extraclasse, que continua com uma voz impecável, forte e que com sua simpatia e atitude cativa e lembra que nós fizemos parte de toda essa história, mais um dos momentos marcantes de uma noite incrível de sábado no disco voador sonoro pousado no coração do Parque  da Redenção. Se Daniela é a rainha do axé? Não saberia dizer, mas com certeza já é muito mais que isso, transcendendo rótulos e se tornando uma das maiores e mais completas (parece frase de Faustão) cantoras desse Brasil.

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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