Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá apresentam o show As V Estações em Porto Alegre

Sempre achei muito fácil criticar alguns artistas, que devido à grandeza e importância, quando morrem ou largam da banda, algumas pessoas acham que a banda tem que acabar. O Queen era muito mais que apenas o Freddie Mercury e condenar Brian May e Roger Taylor de tocarem as músicas que eles mesmo criaram só porque não temos mais o Freddie é muito covarde. Ainda bem que eles seguiram em frente. No Brasil,temos o exemplo do Legião Urbana. Lógico que é imensurável a simbologia física, espiritual e quase divina da presença de Renato Russo, mas Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá tem sede por música, não pensam em se aposentar, e mais, querem levar para sempre, para os legionários, as imortais canções do Legião Urbana. Por motivos extra-campo não podem usar esse nome, mas os dois reuniram um belo time de músicos, um vocalista performático, com grande personalidade, André Frateschi, e andam rodando o Brasil com o show As V Estações, onde a banda presta uma homenagem aos discos As Quatro Estações (1989) e V (1991). E sexta-feira passada a tour aterrissou no Araújo Vianna (com um mês de atraso devido a um adiamento) e o NoSet conferiu de perto.

Poucas bandas no Brasil tem fãs realmente fanáticos ao pé da letra. Los Hermanos, Engenheiros do Hawaii (leia-se Humberto Gessinger) e Legião Urbana causam um êxtase quase indescritível em quem assiste seus shows. Para alguns causa até um desconforto tamanha demonstração de emoção, mas é inegável a emoção de presenciar isso. Com  uma casa abarrotada a banda entrou no palco por volta das 21h40min e, com a entrada de Bonfá e Villa-Lobos, entrou em êxtase. Frateschi e banda puxam Há Tempos, primeira música do lendário disco As Quatro Estações, e com a plateia de pé, deu início a uma viagem no tempo no cancioneiro riquíssimo de umas das bandas mais importantes da música brasileira. Meninos e Meninas quase leva o Araújo abaixo, com mais de 4.000 vozes, celulares filmando tudo e emoção à flor da pele. Quase sem respirar seguem com a bela Sereníssima, clássico do disco V.

O show segue com as maravilhosas Eu Sei e Quase Sem Querer, peixes fora d’água dos dois álbuns celebrados, mas obrigatórias na mente de qualquer fã da banda. Eu Era um Lobisomem Juvenil, essa do V, dá uma pequena esfriada, mas depois de tanto petardo, necessária pra galera recuperar o fôlego. Dado Villa-Lobos continua um grande guitarrista, discreto, mas preciso e com timbres únicos, e sua cativante timidez. Marcelo Bonfá continua o velho Bonfá de sempre, às vezes meio blasé, talvez o baterista mais feijão com arroz da história do rock nacional, ele erra, perde o tempo, mas mantém a classe e elegância, característica desde os hoje longínquos anos 1980. Dado deixa a timidez de lado e canta com muita competência Sete Cidades, pra alegria da galera e o Mundo Anda Tão Complicado me fez presenciar um dos maiores corais em um show do Araújo Vianna, com todo mundo cantando e berrando junto.

Teatro dos Vampiros, uma das letras mais bonitas do Legião Urbana, se passando décadas, ainda representa fielmente cada geração, tamanha crueza e realismo da poesia, cantada pela voz macia e afinada do Marcelo Bonfá. Mais uma vez o frenesi tomou conta do auditório. Merece nota a performance da banda, Lucas Vasconcellos é um exímio músico, intercalando guitarras e violão, Mauro Berman sempre animadão e seguro no contrabaixo, além de ser o diretor musical do show, Pedro Augusto mandando bem nos teclados e afins e, é claro, o André Frateschi. Deve ser uma responsa fora de série cantar as músicas que o Renato Russo cravou nos nossos ouvidos e mentes, mas o cantor, até por sua veia teatral, cria ao seu jeito sua interpretação, não sendo um reles imitador, dá vida própria as canções, e não confunde a galera com invencionices. Uma interpretação teatral, humana e de muita entrega que conseguiu passar a emoção que o momento pedia.

Por Enquanto é cantada pelo Dado, em uma versão próxima da original, cantada sobre uma base pré-gravada, abrindo para aquela sucessão de canções inesquecíveis começando com Tempo Perdido, uma versão hipnótica de Índios, na voz de Dado Villa-Lobos e uma versão cantada em uníssono por um Araújo Vianna de Será. Momento de êxtase e emoção difícil de transpor em palavras. Mas ainda tinha a história do tal de João de Santo Cristo, sim a banda emendou uma versão incrível do maior mistério do Brock, como uma canção com mais de 8 minutos que não se repete, não tem refrão, conseguiu tanto sucesso e está na boca do povo que canta de cabo a rabo a saga do herói brasileiro. Era nítida a emoção dos músicos com a alegria e vibração da plateia.

1965 (Duas Tribos), do disco de 1989, e Soldados, do primeiro disco de 1985, é aquele momento da galera ir ao banheiro ou ir buscar um chopp, depois de tanta adrenalina e sequência de canções brilhantes. Nada contra as duas, quem é fã de Legião, ou legionário canta todas, mas era claro que a banda deu aquela baixada pra isso mesmo. Bonfá, mais uma vez afinadíssimo e com uma delicada voz, interpreta com o coração a bela Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar e Dado de bate-pronto respondeu cantando uma versão bem lenta e cantada com emoção de Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto. Marcelo Bonfá chama para o palco seu filho João Pedro Bonfá, guitarrista, para juntos tocarem o hino Pais e Filhos. Emoção à flor da pele em mais uma canção atemporal, sentimental, humana e que goste ou não goste está cravada na mente do brasileiro. Poucas vezes vi o Araújo vibrar tanto e cantar com tanta explosão. Monte Castelo, em formato acústico com Bonfá tocando um pandeiro na frente do palco, faz a plateia ligar seus celulares e iluminar as cadeiras, em um espetáculo visual marcante. Depois da saída da banda do palco é chegado o bis. Frateschi então explica que é um legionário de carteirinha e agradece a Renato Russo pelo o que ele ainda representa pra tanta gente e o quanto ele está presente naquela inesquecível noite e a galera responde com Renato, Renato, Renato, em uma bela homenagem ao poeta. Para finalizar, tocam Metal Contra as Nuvens, o épico de mais de 11 minutos do álbum V, com passagens de calmaria, peso, rock, tudo interpretado com visceralidade marcante por André, fechando com grande estilo um gigante espetáculo.

Porto Alegre teve o prazer de se emocionar, cantar, chorar, berrar, como manda todo o fã do Legião Urbana. O que pra uns pode parecer ser um faniquito imaturo, uma idolatria cega, para outros é uma religião, e como diz a palavra, se religar a seus ídolos, no caso Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos e suas canções que moldaram suas vidas, amores, caráter e caminhadas. Ter o prazer de ver uma banda coesa e um vocalista que respeita o legado do Renato, mas nunca perde sua personalidade, é uma experiência quase celestial, uma oportunidade única e que com certeza já entrou pra história dos grandes shows do ano em Porto Alegre. E com certeza Renato Russo sorri onde quer que esteja, mesmo que no coração de quem foi tocado por sua poesia.

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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