Crítica: Não! Não Olhe!

No final da de década de 1950, uma série de televisão marcou corações e mentes de uma geração. Histórias fantásticas, finais surpreendentes, ficção científica, terror, crítica social e pitadas de humor, Rod Serling apresentou pro mundo a série Além da Imaginação (The Twilight Zone). Além de produtor, roteirista e às vezes diretor, Rod apresentava o programa dando uma breve introdução aos fabulosos episódios com geniais roteiros criativos e mirabolantes. Um sucesso da TV estadunidense. Spielberg, entusiasta da série, dirigiu um filme com outros diretores, em 1983, com esse nome e a série teve algumas tentativas de volta nos anos 1980. Jordan Peele, um dos cineastas mais talentosos da safra horror moderno, teve a incumbência de dar vida, em 2019, à última versão da série na TV. Outro fã da The Twilight Zone, Jordan faz de seu novo filme um mega episódio de Além da Imaginação. Não! Não Olhe! (Nope, 2022) estreia nos cinemas brasileiros nessa quinta, mais um incrível filme do genial cineasta.

Otis Jr. (OJ) e Emerald são filhos de Otis Haywood. Eles têm um rancho na Califórnia, onde treinam cavalos para fazerem participações em filmes. A família conta que eles são descendentes de um cowboy negro, Alistair Haywood, que foi ator de umas das primeiras imagens em movimento da história – o que, logicamente, coloca a família como parte da história do cinema. Um dia, papai Otis, quando estava montando um cavalo, sofre um acidente com um estranho objeto que caiu do céu e acaba morrendo. OJ filho jamais se recupera do trauma, segue magoado em sua rotina de treinamentos e sempre está em conflito com a enérgica e falastrona irmã Em. Os irmãos têm como vizinho Ricky “Jupe” Park, que nos anos 1990 foi ator mirim de uma série de sucesso, que foi marcada pela tragédia, quando um chimpanzé descontrolado atacou e matou alguns atores. Rick, hoje adulto, vive das lembranças desse programa que virou cult pela tragédia, tem um racho temático de faroeste e arrasta alguns turistas para seus shows e parcas atrações, além de comprar cavalos dos irmãos. Só que uma noite OJ nota que seus cavalos andam assustados, ouve estranhos barulhos no céu e sente a presença de algo inexplicável na sua frente, além de as câmeras não captarem a energia e desligar. Então, ele e sua irmã, com a ajuda do vendedor de câmeras de segurança Angel Torres, resolvem de qualquer maneira registar esses estranhos fenômenos e, ao mesmo tempo, o vizinho Jupe decide faturar em cima disso.

Já consigo definir que Jordan Peelle é um cineasta que domina o gênero. Não! Não Olhe! (nome cretino em português) pode até não ter as reviravoltas incríveis de seus dois filmes anteriores, mas é uma aula de ousadia, direção, com um roteiro fragmentado (o filme é dividido em episódios com os nomes dos cavalos, mas que se ligam entre si), é o seu filme mais perturbador e por vezes até claustrofóbico. Ao invés de fazer o mais do mesmo, ele resolveu dar uma aula de tensão e fotografia. As imagens são um show à parte, conduzidas pelas tomadas de Hoyte van Hoytema, que usa a tecnologia de captação para Imax, com tomadas aéreas, profundas e amplas, explorando a imensidão desértica do rancho dos Haywood. E o mais incrível do filme é que ele tem pitadas de ficção científica, tem toda a pinta de filmes de Ufos, mas tem terror, dá grandes sustos, não esquece da comédia e do nonsense, às vezes, homenageia os faroestes clássicos e os cavalos, e também dá sua crítica à sociedade refém da imagem, onde tudo, para existir, precisa ser filmado, postado, provado e olhado, mesmo que olhar possa fazer você perder a vida. A música, de Michael Abels, é extremamente perturbadora, abusa de graves e causa o desconforto necessário para entrarmos de cabeça na esquisita história de Peele. Às vezes o filme tem algumas referências a Sinais, Fim dos Dias ou até ao clássico Contatos Imediatos de Terceiro Grau, mas o diretor, mesmo usando algumas ideias, cria algo novo, não tão fácil de digerir e que causa muito impacto.

Daniel Kaluuya, fiel escudeiro do diretor, está muito bem como o calado, amargurado e taciturno OJ. Mas o filme é de Keke Palmer, como a falante e espevitada Emerald, um oposto total do irmão, Keke faz de tudo para conseguir as provas dos fenômenos que assolam o rancho da família, sendo o alivio cômico, mas fio importantíssimo na condução da trama. Steven Yeun também brilha como o dono do parque, Rick, que tenta ganhar dinheiro em qualquer coisa que faz, abusando sem dó da sociedade do espetáculo, além de usar o seu trágico passado pra atrair fãs. Completam o time Brandon Perea, como o vendedor de câmeras de segurança, que não consegue se conter e quer ajudar os irmãos, e Michael Wincott, como um renomado diretor de fotografia, que acaba se interessando pela história, sempre com mau humor realçado pela sua indefectível voz rouca.

 

Uns até criticaram o diretor, porque Não! Não Olhe! não tem a crítica social frequente nos seus filmes, ou não denuncia o racismo, mas acredito que Jordan deve estar pouco preocupado com isso. Ele consegue, num mix de ideias, criar um filme que critica a espetacularização da vida, o uso de animais em produções cinematográficas, a cultura da imagem a qualquer custo e não tem medo de experimentar, fugir do óbvio. Mesmo assim, com gente criticando, cria uma história que coloca a presença do negro lá nos primórdios do cinema, mesmo que seja uma invenção sua, a imagem do cowboy em movimento, ele recria a história ao seu jeito, dando o protagonismo ao negro. Cenas como a chuva de sangue sobre a casa dos Haywood, um espetáculo visual, ou até a cena em que OJ tem um encontro com alienígenas são de causar arrepios. Não! Não Olhe! é um filme difícil, recheado de detalhes, prova com metáforas que, por mais que tentemos, não temos total domínio sobre a natureza, os animais e, principalmente, o desconhecido. Suas duas horas e pouco de exibição provocam e até perturbam o espectador, que busca explicações, saídas e torce pelos protagonistas. O certo seríamos nos livrar das teses e certezas e, como diria a famosa série de TV que inspirou o filme, às vezes é bom entrarmos na região da fantasia, aquela região que é além da imaginação, e para isso Jordan nos dá todas as ferramentas, com mais um ótimo filme.

 

Mais do NoSet