Crítica: Mussum – o Filmis

Certa tarde, em uma favela pobre do Rio de Janeiro, Carlinhos, um menino cheio de sonhos e alegria, ouve do outro lado de um muro, mais precisamente um quintal, o contagiante som de uma roda de samba. O moleque, vidrado no ritmo, é logicamente convidado por um dos partideiros a participar daquela mesa, com muito ritmo, animação, cerveja gelada e música boa. Só que Dona Malvina, mãe do Carlinhos, descobre que o menino está naquele, digamos assim, ambiente pesado, e do outro lado do muro manda o menino voltar e largar a batucada. Carlinhos sobe o muro e fica: de um lado aquele som que arrepia a sua alma e de outro sua mãe, que só quer o menino no bom caminho. Naquela encruzilhada, Carlinhos escolheu a mãe, mas sua alma já estava tomada pelo feitiço do samba. Essa é uma das cenas de Mussum – o Filmis (2023), que estreia essa semana, com direção de Sílvio Guindane, e que sintetiza magistralmente a alma de Antônio Carlos Bernardes Gomes, um brasileiro alegre, amante do samba e que tem a mãe como bússola fundamental na vida.

Antônio Carlos, ou Carlinhos, é um menino pobre, criado com sua irmã por sua mãe, Dona Malvina, mulher guerreira, que na condição de mãe solo, faz de tudo para amar, proteger, sustentar e educar seus filhos. Carlinhos quer ser alguém na vida, estuda, consegue ir a um bom colégio e pretende seguir carreira na aeronáutica, mas ele é um sambista e junto com os amigos fundam Os Originais do Samba, um dos grupos referência no estilo nos anos 1960 e 1970. Já como Carlinhos do Reco Reco, se torna uma figura popular e devido a sua espontaneidade e bom humor, acaba virando ídolo na TV, já com a alcunha de Mussum, apelido dado por Grande Otelo, e com seus “trejeitis” de colocar os “is” no fim das palavras, ideia de Chico Anysio. Se dividindo entre o humor, a família e o samba, sua vida muda totalmente quando entra para Os Trapalhões, e com Didi, Dedé e Zacarias, transformam a vida de milhares de crianças brasileiras, tornando-se um dos maiores humoristas da história do Brasil.

Não tenho dúvida em afirmar que, mesmo com quase 30 anos de seu precoce falecimento, Mussum é o trapalhão mais famoso nos dias de hoje. Resgatado pelo YouTube, virou meme, estampa camisas, tem cerveja com seu nome e seu jeito popular, sempre entornando uma bebida, seu estilo peculiar de falar e seu sorriso encantador, ainda estão vivos na memória do brasileiro. Faltava realmente ter sua rica trajetória de vida contada nas telonas e coube a Sílvio Guindane na direção, com um roteiro adaptado de Paulo Cursino da obra Mussum Forevis – Samba, Mé e Trapalhões, de Juliano Barreto, transformar em imagens a intensa e alegre vida do trapalhão.

E o filme acerta em quase tudo. Dividindo a vida de Mussum em três partes, a primeira, sua infância e como, mesmo com as tentações da vida e da rua, ouviu sua mãe e resolveu estudar, o início da vida adulta, quando revolucionou o samba com seu reco reco e simpatia, fazendo dos Originais do Samba um samba exportação made in Brasil para o mundo, e é claro, sua fase adulta, já como o inesquecível trapalhão. E tudo é contado sem firulas, com um roteiro direto, sem grandes inovações ou invencionices medonhas, mas sim uma simplicidade necessária para entendermos a real essência do Mussum. Tudo o que importa está ali, um homem sempre grudado na sua mãe, sua paixão pelo samba, a Mangueira, bebida e mulheres (mesmo que seus conflituosos casamentos passem na trama superficialmente) e seu talento nato para fazer rir. No quesito musical e no fazer rir, o filme é um deleite. As reconstituições dos esquetes do programa são excelentes, com cada detalhe e figurino recriados no maior esmero e as passagens dos Originais do Samba, também são de um capricho visual e sonoro deslumbrantes. Uma cinebiografia que mostra o que tem que ser mostrado e foca no personagem e a importância dele na vida dos brasileiros. Evita conflitos ou aprofundamentos, principalmente na ruptura dos três trapalhões com Didi nos anos 1980, ou seus casamentos fracassados, o que pode ser considerado chapa branca para alguns, mas com todo respeito, para isso temos a excelente biografia que deu origem ao roteiro. E mesmo com tanta leveza e cenas tocantes, até a carga emocional é bem dosada, evitando o choro fácil, com exceção  do relacionamento dele com Dona Malvina, que nos dá a dimensão da importância da mãe na vida de um brasileiro. Como na cena que citei no início do texto, Mussum, por mais que nunca tenha deixado seus sonhos de lado, sempre teve a mãe como referência e representa um pouco de um Brasil do abandono, onde mães e avós criam sozinhas as crianças abandonadas por homens covardes. E por mais que Mussum tenha virado um ídolo, para Dona Malvina ele sempre seria seu menino Carlinhos. E Dona Malvina, sua ordeira, corajosa e doce mãezinha. Momentos de ternura que provocam lágrimas verdadeiras e demonstram o quanto a família é um alicerce básico para o sucesso e o caráter.

Todos os atores que fazem o Mussum estão excelentes, desde o menino Thawan Lucas, que consegue transmitir toda a educação e molecagem do humorista, até Yury Marçal, como um adulto aspirante a militar e conquistando o mundo com o samba, está muito bem com frases certeiras e caras e bocas contagiantes, mas logicamente, que Ailton Graça simplesmente está incrível no papel do Mussum maduro. Quando você assiste a um filme e acha que não é uma atuação, mas imagens de arquivo do biografado, você vê o tamanho da entrega, tanto visual, que impressiona demais, mas também desde a voz, o andar, os trejeitos que Graça fez. Uma das atuações mais espetaculares do cinema brasileiro em tempos, ele nos faz rir, chorar, se emocionar, sentir e matar a saudades do humorista que era a cara do Brasil. Cacau Protásio está ótima como a mãe mais jovem do sambista, como a mãe coruja, que enfrenta tudo e todos para ver o filho ser alguém, mas é a brilhante Neusa Borges, como Dona Malvina mais madura, que a sintonia com Ailton é de uma simbiose divina, já que o Mussum era uma eterna criança, que sempre precisava do colo da mãe para se consolar, e Neusa, na sua atuação soberba, leva esse relacionamento mãe e filho, isso com uma sutileza tocante.

Mussum – o Filmis tem tudo para ser um sucesso. Temos um personagem cativante, uma direção caprichada, uma trama conhecida por muitos, mas muito bem costurada, sem grandes traumas ou problemáticas rasas que acabam afundando muitas cinebiografias. Vemos o Mussum nas telas, seu sorriso, seu jeito cativante e alegre de ser, um humanista que só fez o Brasil sambar ou dar risadas, nos deixou cedo demais (o filme acerta em não chegar até a sua morte, o que poderia descambar para um dramalhão). Tinha como referência sua mãe, um retrato do verdadeiro Brasil, onde temos muitos Antônio Carlos e Donas Malvinas lutando junto, se amando e servindo como alicerce um para o outro para conquistar seus sonhos. Certamente, um dos melhores filmes do ano, por mais que alguns críticos com seus bla bla bla de arcos de desenvolvimento e palavras chatas e rebuscadas vão meter pau no estilo simples e popularesco da película, o filme vai, com tranquilidade, fazer a felicidade de quem realmente importa, o público. Enfim, bora tomar uma ampola diurética, assistir e se emocionar com o gigante e inesquecível Antônio Carlos Gomes Bernardes, ou simplesmente Mussum, nosso gigante trapalhão!

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