Crítica: Até os Ossos

Duas adolescentes estão deitadas embaixo de uma mesa de vidro, numa sala de estar, numa casa estadunidense típica dos anos  1980. Na sala, mais algumas amigas nos sofás e poltronas. Por um momento a proximidade das meninas, os olhares, deitadas quase grudadas uma à outra, dá a entender que elas vão se beijar e sentem uma atração. E quando Maren pega a mão de sua colega, tudo leva a crer que logo estarão juntas, mas ela simplesmente devora um dedo da mão da menina, em uma cena surpreendente, já que ela literalmente dilacerou a parte do corpo da colega, deixando o dedo apenas pendurado na mão, e tudo isso mostrado de uma maneira explícita e crua. Essa cena faz parte do novo filme de Luca Guadagnino, que estreia essa semana nos cinemas, o instigante Até os Ossos (Bones and All, 2022).

Maren Yearly , a adolescente que mastigou o dedo da colega, sofre de uma patologia que a faz praticar canibalismo, quase como um sopro vital de vida. Ela foi abandonada cedo pela mãe e depois desse último episódio, seu pai também larga dela e deixa uma fita contando que desde muito cedo ela já sofria disso. Maren, com 18 anos, segue uma jornada pelos Estados Unidos, tentando buscar respostas, a sua mãe e seu rumo na vida. Encontra no caminho um canibal veterano Sully, que a ensina alguns truques da condição dos dois, além de devorarem uma senhora. E nas suas andanças, conhece um rapaz que tem o mesmo problema existencial que ela, Lee, que também não controla seus impulsos e acaba fazendo vítimas por aí. Os dois então engatam uma trip pelos Estados Unidos, se apaixonando, vivendo à margem da sociedade, ao mesmo tempo tentam dar fim ao seu vício, mas como uma doença é mais forte que qualquer coisa, ainda os faz praticarem novos atos pelo interior estadunidense.

Até os Ossos é um filme surpreendente. Não pela questão cinematográfica, Luca tem uma direção razoável, explora uma fotografia que privilegia o interior da América em lindas tomadas, tem um roteiro bem redondinho, de David Kajganich, que adaptou o romance “canibal” Bones and All, de Camille DeAngelis, ficando longe de ser uma obra-prima. Mas o que realmente nos deixa boquiaberto é a coragem de contar e humanizar, de uma maneira eficiente, uma história de canibalismo, sangue, assassinatos e mutilações. E desde a cena inicial fica claro que Luca não abre mão do explícito, os dois personagens, quase um Romeu e Julieta condenados por um amor impossível, se sujam, tem as bocas ensopadas de sangue, dilaceram carne humana, semelhante a um filme de vampiros, mas que no caso são jovens humanos, precisando entender o porquê sofrem dessa maldição surreal. Ao mesmo tempo, sabem que o elixir da vida está nessa bizarra condição. Podemos até questionar que foi humanizado o romance do casal, dois criminosos marginalizados e não compreendidos pela sociedade maléfica que não suporta o diferente, mas o que podemos dizer é que eles nunca buscam ajuda e vivem suas dores com muito amor, entre vísceras e pele humana. Enfim, Até os Ossos tem tudo para ser um cult movie, daqueles que todos tem que assistir um dia, nem que seja pra ter asco ou tiras suas conclusões da quase absurda, mas contagiante história, tão bem executada nas telas .

Taylor Russell, como Maren Yearly, tem uma atuação soberba, passando toda a angústia da jovem em busca de respostas e saídas para sua vida, abandonada e sem rumo. Timotheé Chalamet, sempre com boas atuações, dessa vez como o blasé Lee, canibal ou devorador, um quase James Dean, rebelde, sem família, ou necessitando fugir dela, sedento por vítimas e por roubá-las, que acaba se apaixonando por uma igual, no caso, a Maren. Chalamet consegue nos provocar sentimentos ambíguos, porque ora nos sensibilizamos com suas dores existenciais, ora temos ódio do seu jeito violento de ser e do seu desprezo pela vida dos outros. Um ator em ascensão constante. Mark Rylance, como Sullly, o veterano devorador, também dá um show com um personagem tanto caricato, como perigoso, mais próximo de um seria killer canibal, que tanto está em voga no momento, belíssima atuação.

Apesar do filme se passar nos anos 1980, com referências a bandas como Kiss, Iron Maiden e Dokken, vejo a questão filosófica existencial do casal quase como fruto de uma geração mais atual. Os problemas do casal Maren e Lee são idênticos aos de alguns da geração Z, na sua luta individualista pela liberdade irresponsável, o asco a outras gerações, o jeito de contemplar o mundo a sua maneira, características diferentes da época do filme, mas propositalmente atualizadas, até para chamar a atenção do público-alvo do filme .

Até os Ossos vai fazer o espectador ter sentimentos opostos. Enquanto vai se encantar e torcer pelo casal, extremamente romantizado, andando em estradas americanas, contemplando o pôr do sol, vivendo e tentando se entender, vai embrulhar o estômago vendo cenas extremamente chocantes, fortes e de mau gosto, um carrossel de emoções ao observador, que ao mesmo tempo que torce pelo simpático casal, se apavora com o meio de vida grotesco que faz os dois se manterem vivos. E com perdão do trocadilho e citando o sucesso de Ivete Sangalo, um Amor Canibal, onde eles não comem o coração um do outro, se apaixonam, mas devorar o pai e os dedos da colega está liberado. Como falei antes, imperdível filme que tem tudo para ser lembrado (para o bem ou mal) por muito tempo.

 

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