Crítica: Assassinos da Lua das Flores

Em meio a uma enxurrada de filmes ruins, verdadeiros abacaxis cinematográficos, a felicidade de esperar um novo filme de um diretor como Almodóvar, M. Night Shyamalan,  Christopher Nolan, Woody Allen, Ridley Scott, ou até mais novos como Jordan Peele e Ari Aster, é algo recompensador. E quando esse novo filme é do Martin Scorsese então, temos potencializada a expectativa, pois qualquer filme mediano de alguém do quilate dele, com certeza, é superior a 90 por cento de qualquer produção atual. E em 2023 fomos premiados com mais uma obra do veterano diretor, e que de mediana não tem nada, estou falando do excelente Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flowers Moon, 2023), que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira.

O povo Osage, depois de muito extermínio e de ser expulso de terras legítimas pelo homem branco, acaba se fixando em reservas indígenas de Oklahoma. No início do século 20, por sorte (ou azar), descobrem petróleo no seu novo território e acabam enriquecendo e mudando de vida. Mas esse enriquecimento acaba provocando a cobiça do homem branco, que vê como uma oportunidade de se grudarem nos novos ricos e os explorarem. Nesse contexto, chega à cidade, voltando da Primeira Guerra Mundial, Ernest Burkhart, jovem ambicioso, que na esperança de vencer na vida, vai de encontro a seu tio William Hale, ou o Rei, como gosta de ser chamado, um veterano que há décadas convive “harmoniosamente” com os Osage, enriquecendo com seu gado e suas falcatruas. Uma das falcatruas da região é os homens brancos se casarem com as Osage ricas, o que garantiria o sustento deles e Ernest acaba casando com Mollie, uma das irmãs de uma das famílias mais abastadas da região e garantindo a boa vida. Só que nos últimos anos um mistério assola a região: diversos assassinatos sem investigação assombram a cidade e quando as mortes começam a aumentar, incluindo a família de Mollie e outros Osage importantes da região, a situação começa a ficar insuportável, fazendo inclusive o recém criado FBI investigar o caso, chegando a conclusões da participação de insuspeitáveis cidadãos da cidade nas terríveis mortes.

Com a audaciosa missão de adaptar o excelente livro Killers of the Flowers Moon: the Osage Murders and the Birth of the FBI, de David Grann, o diretor, se uniu a Eric Roth e a quatro mãos, fizeram essa gigantesca adaptação para as telonas desde já clássico livro. E com Scorsese não tem erro. Transforma as páginas do livro em um épico cinematográfico com quase três horas e meia de duração, um filme que mostra uma história da América com chagas ainda não cicatrizadas. Já fomos apresentados no cinema a diversas películas mostrando o genocídio dos povos indígenas em batalhas de guerras sanguinárias, mas assistirmos a um massacre ou a uma epidemia de mortes, como um personagem do filme compara, de maneira silenciosa, nas sombras, é algo raro de se ver nas telonas. E também uma amostra de como eram os Estados Unidos do início do século, um país vencedor de uma grande guerra, dominado por mega empresas, corporações e fazendo do petróleo, ou o ouro negro, o motivo de tanta cobiça e desgraça. Mas aí que Scorsese surpreende. Ao invés de fazer apenas um filme de denúncia das mega corporações e o quanto tanta gente sofreu nas suas mãos, através de uma micro história, consegue criar uma trama que  resume todo o drama de uma nação em desenvolvimento.

 

Mollie e sua família, do povo Osange, são os novos ricos. Por vezes deslumbrados com a nova vida, com casas confortáveis, jóias caras, carros com motoristas brancos e cortejados por homens de todas as partes do país, são o exemplo de uma ascensão social que o status quo não vê com bons olhos. Mas como vivemos em tempos, digamos civilizados, eles precisam ser respeitados e os donos do poder ou vigaristas de plantão precisam de outros artifícios para tomar deles o que o homem branco não admite perder. Aí que entra a figura de William, fazendeiro das antigas, que circula muito bem entre os dois mundos, mas que enriquce na surdina com maracutaias, seguros fraudulentos e forçados aos Osange, além de atentados ameaçadores. Com um cinismo calculado, mas com preconceito enraizado, vive uma vida dúbia para alcançar seus objetivos. Um deles envolve seu sobrinho Ernest. Um cara boa vida, que quer enriquecer sem trabalho, é a isca perfeita para conquistar Mollie e assim enriquecer com a fortuna da esposa. Uma das artimanhas dos brancos na cidade era essa, se juntar a famílias dos Osage ricos e com isso ganharem seu quinhão com o dinheiro do petróleo. Ernest é o personagem mais ambíguo, por vezes até sentimos que ele realmente ama Mollie, mas na maior parte do filme não conseguimos ter empatia com suas canalhices.

Se com um roteiro afiado e diálogos hipnóticos, que mesmo com mais de três horas não cansam o espectador, já vale a pena, na parte de concepção do filme temos mais um show de Scorsese. Suas tomadas aéreas, desde a cena inicial com o petróleo jorrando nos indígenas, até o final, usando a flor em tomada de grua, os closes nos atores, profundidade, a cena da fazenda queimando, tudo feito com aquele toque único do artista, um artesão que faz cinema à moda antiga, com nuances, sutilezas e transformando cada cena em uma peça de quebra-cabeça necessário na intrincada trama. A trilha sonora é algo incrível, intercalando tambores indígenas, blues e uma guitarra que rasga as cenas, autoria de Robbie Robertson, tudo pontuando sutilmente cada cena, sem apressar nada, apenas montar um clima único. Scorsese e montagem é quase uma obsessão, mais uma vez a ótima colaboradora Thelma Schoonmaker consegue unir aquela penca de personagens, diálogos, pensamentos e imagens, com até uma mais discreta edição que alguns outros filmes do diretor, mas com um refino impecável. Fotografia de Rodrigo Prieto também é um personagem central na trama, desde as cenas já citadas e com destaque a passagens do filme onde, com filtros na imagem, é registrada a ascensão dos Osage e a opulência da cidade em desenvolvimento.

Mas obviamente o filme é do trio de atores. Robert de Niro, como sempre, fazendo um papel de Robert de Niro, mas como sempre, sensacional. O despudorado personagem William, ou Rei, é um retrato de uma América que vende a alma para Deus e o Diabo pelo dinheiro. Sem escrúpulos, engana os Osage com uma cara deslavada, mas nunca perdendo a diplomacia. Repleto de preconceitos, que sabe reprimir nas horas certas, venceu na vida através de muita mutreta, mentira e sangue, e De Niro mais uma vez como parceiro irmão de Scorsese, consegue passar tudo isso apenas com olhares, frases curtas e imposição de voz, um show de artista. Leonardo DiCaprio também já podemos dizer que é um irmão do Martin, ou filho, dependendo do ponto de vista. A cada filme DiCaprio surpreende mais. Aqui, como o sobrinho Ernest, representando a nova América, que se aventura por qualquer situação atrás de grana. Leo nos apresenta um personagem com duas caras, um canalha de marca maior, que engana tão bem sua família que até por um momento chega a enganar o espectador. Um ator despudorado, que se entrega, deixa a vaidade de lado e constrói mais um personagem inesquecível do cinema, mostrando ser um dos maiores de sua geração. E seu jogo de atuação com De Niro é inebriante, um prêmio ao bom cinema e a seus amantes. E quando um filme tem dois gigantes como Leonardo e De Niro, mas quem rouba o filme é uma terceira personagem? Lily Gladstone dá vida a Mollie, a guerreira mulher Osange, que vive um destino carregado de tragédias, mas que tem como característica jamais desmoronar. Mollie é uma mulher forte, audaz, que desde os inícios dos flertes do malandro Ernest, por mais que confie ou ame o rapaz, sabe que jamais iria se dobrar para ele. E Lily, apenas com seus olhares, sorriso discreto, encanta e mostra toda a força da personagem, que representa aquela faceta da América sofredora, que é explorada, foi despojada, convive com o preconceito, mas jamais se entrega, tem coragem e dá a volta por cima. Afinal, perder todas as irmãs, a mãe, uma filha, sofrer de diabetes, ser envenenada diariamente pelo marido e vê-lo ainda envolvido em falcatruas e crimes e mesmo assim não desistir, levantar da cama e enfrentar a vida, como diria a canção Maria, Maria, do Milton Nascimento, é não viver, apenas aguentar. Sem dúvida, é a perfeita encarnação do povo independente da nação. Atuação digna de Oscar e que ofusca positivamente a dupla de atores preferida do diretor.

Assassinos da Lua das Flores é aquele filme que faz a gente acreditar no cinema. No cinema de verdade, pois só quem tem paixão por ele fica três horas e meia numa sala de cinema e se embriaga com prazer de tanta força de um roteiro, atuações, fotografia, música, montagem, tudo orquestrado por um gênio que é o Martin Scorsese. É mais uma obra-prima do diretor, discordo que seja a sua obra-prima, é mais uma delas, entre tantos filmes marcantes na sua grandiosa carreira. 

Um filme denúncia, que retrata um Estados Unidos em construção (até o FBI ainda era incipiente, mas J. Edgar Hoover já citado), com dificuldades de convivência, endinheirado pela guerra e pelo petróleo, uma terra de aventureiros sem limites nas suas ações, onde o preconceito, a ganância e a violência ditavam as regras, mesmo que às escuras. Um filme necessário, com uma grandiosidade e complexidade dos épicos. Violento, mas sem glamourizar a violência, sensível e lírico, uma veneração e respeito aos povos originários, representados aqui pelos Osage, que tentaram entrar e desfrutar do American way of life, acabaram sendo excluídos à base da bala da festa, mas em nenhum momento desistiram de seus princípios. Ah, e ainda tem um final com uma rica homenagem aos programas de rádio dos anos 1940, numa reconstituição sensacional de radionovelas tentando explicar o desfecho do filme, uma cena que só um amante e artesão da arte como Scorsese poderia ter a sensibilidade de realizar.

 

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