Crítica: As Histórias de Meu Pai

Pieguices à parte, a música Pai, do cantor, compositor, galã e casamenteiro Fábio Jr., define em poucas palavras (entre tantas da obra-prima que é essa canção) o que representa para todos nós a figura paterna. O trecho: “Pai, você foi meu herói, meu bandido’’, talvez defina o sentimento primordial dessa relação, um pai vai da posição de super-herói e exemplo de tudo para, em segundos, se transformar num autoritário vilão, que só atrapalha nossas vidas. E fora quando o pai em questão ainda é um perigoso mentiroso, paranoico e manipulador. Jean-Pierre Améris nos mostra nas telonas essa perspectiva no filme As Histórias de Meu Pai (Profession du Père, 2020), que estreia nos cinemas brasileiros nessa quinta-feira.

Emilie é um sensível garoto de 11 anos, que vive em Lyon, França, em 1961. Com um talento único para o desenho e uma mãe amorosa, acaba vendo seu pai, um nacionalista francês surtar ao ver que a França está desistindo da colonização da Argélia. O pai, através de montes de histórias, em que conta que faz parte de uma organização secreta, tem amigos norte-americanos, luta judô ou que criou uma companhia de canto famosa na cidade, consegue dominar seu filho e o persuadir que eles tem que defender a França, que De Gaulle é um entreguista, que tem que ser combatido, ao mesmo tempo fascinando e amedrontando o filho.

O diretor nos apresenta um belo retrato direto de quanto pode ser nociva a dominação paterna. Emilie sofre uma overdose de informações desconexas e absurdas do pai, é dominado na base da força e da cinta se não o agrada e vê sua mãe sofrer em silêncio os abusos diários. E o pior é que o menino, pouco a pouco, como uma esponja, acaba absorvendo as sandices do pai e passa a agir de forma perigosa. Jean-Pierre Améris consegue, em um retrato histórico de uma França em que começavam a ruir as antigas certezas, numa conexão, tentar unir o turbulento momento do país em uma história pessoal densa, uma família que sofria junto à loucura do pai, que representava o passado a ser derrubado da França, junto com o menino, que seria a esperança de um novo país, mas é castrado pelas sandices da autoridade do pai. Isso numa época que o é proibido proibir ainda estava longe de ser proclamado.

Benoit Poelvoorde tem uma atuação forte como André, o pai tomado por um desespero de salvação nacional, uma interpretação perfeita do devaneio do personagem, em momentos ameaçadores e com um poder de persuasão quase infalível. Jules Lefebvre é o menino Emilie, outra atuação contundente, mostrando o quanto um garoto doce, sensível e com tendências artísticas mudava sobre a má influência das mentiras do pai. Completa a família Audrey Dana, que interpreta a sofrida e passiva mãe e esposa Denise, que caladamente não reage ao marido truculento e custa a entender o tamanho do problema dele, ou ao menos faz de tudo para normalizar toda aquela situação. Um trio que leva o filme de uma maneira ao mesmo tempo forte e delicada aquele teatro do absurdo todo.

As histórias de Meu Pai tem muitas virtudes e surpresas, em alguns momentos tamanha as mentiras e paranoias de André, temos a impressão que Emilie está criando tudo na sua imaginação, da forma tão real que as histórias vão penetrando na sua mente e de tão surreais que eram as ordens do pai. O menino chega ao ponto de recrutar um amigo da escola, francês oriundo da Argélia, para fazer parte da OAS, organização secreta que seu pai achava fazer parte, além do plano mirabolante e perigoso de assassinar o General De Gaulle. Às vezes fica difícil entender tanta passividade da sua mãe e tanta lorota do pai e o quanto tudo isso levava o menino a ficar a um passo da loucura.

O filme acaba levando a um final óbvio e até previsível, mas segura bem a trama (adaptada de um romance de 2015, de mesmo nome do filme), alterando melancolia, um leve humor, uma questão histórica espinhosa e uma inocente adoração de um  filho pelo pai, que por mais absurdas que poderiam parecer suas ideias, indagações e influência sobre o garoto, a face de herói de André e a maneira quase lúdica que Emile executa as ordens, mostram o quão nocivo e difícil de evitar é a influência da autoridade familiar. Sem falar o quanto a vista grossa e a dificuldade de ver a realidade, no caso da mãe, que era mera espectadora de tudo, poderiam levar a uma tragédia ou traumas para o resto de uma vida. Um curioso retrato de família misturando história, loucura e dominação, em uma película que merece ser conferida.

 

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