Casa Ramil apresenta espetáculo em Porto Alegre

Sexta passada, no Araújo Vianna, todos fomos convidados para visitar a Casa Ramil. Os descendentes da Dona Dalva Ramil usaram o icônico auditório para abrir as portas para o público, da arte sanguínea da família pelotense. Com um projeto reunindo gerações de músicos, fizeram do palco do Araújo um grande sarau, às vezes como quintal de uma casa no Laranjal, às vezes como um animado salão de festa. E nós do NoSet tivemos o prazer de acompanhar essa celebração de talento, musicalidade e sucessos. E contamos aqui como foi a inesquecível noite.

Em primeiro lugar acho que fica nítido que tenho que apresentar quem é a Casa Ramil. Kleiton e Kledir e Vitor Ramil, acho que dispensam apresentações, os irmãos mais velhos, desde os anos 1970, já nos presenteiam com música de altíssima qualidade e o mano mais novo, o Vitor, já com 40 anos de carreira, é um dos compositores e cantores mais celebrados do Brasil. Completam o time Ian Ramil, filho do Vitor, que hoje tem uma sólida carreira desgarrada do nome do pai. João Ramil é filho do Kleiton e começa a engatar sua arte pelos palcos da vida e completam a casa os talentosíssimos Gutcha e Thiago, sobrinhos do Kleiton, Kledir e Vitor, filhos da Cátia, irmã dos famosos manos Ramil.

Com um auditório com um bom público, numa chuvosa noite abrindo setembro, e com um cansativo atraso, por volta das 21h35min a família adentra ao palco. Em formato praticamente acústico e sentados, começam com a música que batiza o projeto, Casa Ramil. Seguem com Lagoa dos Patos, do disco de 1981 dos irmãos Kleiton e Kledir, da época em que eram sucesso nacional e fecham a primeira parte com a belíssima Canto, de Thiago Ramil.

Vitor Ramil então começa Ramilonga, um dos seus maiores sucessos e quase um hino alternativo de Porto Alegre, a capital fria ao sul do Brasil, essa cantada com grande emoção pela galera. Autorretrato, divertida e alegre canção de Kleiton e Kledir, segue o show, com todos cantando ao menos uma parte da ótima letra. Uma das características mais marcantes da Casa Ramil são os arranjos vocais. Todos os integrantes cantam muito bem e a união de vozes nos dá uma sensação de agradável prazer aos ouvidos. Todos tem timbres únicos e fortes, com destaque para Gutcha com uma linda voz, mostrando a força feminina naquele meio quase total masculino do grupo, onde ela se destaca com muito brilho e talento. A infinidade de instrumentos que o grupo utiliza é nítido de nota. Os arranjos são preenchidos, além dos tradicionais violões de cordas de aço ou nylon, com instrumentos como violino, rabeca, baixo elétrico, mas temos a utilização de peculiares objetos sonoros com Saz (uma espécie de violão de origem turca), harmónio ou órgão de fole e cuatro, um tipo de violão venezuelano, além é claro de percussão como bumbo leguero, sopapo, chocalhos, pandeiro e até uma folhagem seca, a maioria tocada por Gutcha. Um espetáculo de sons e um deleite para nossos ouvidos. Foi no Mês que Vem segue o baile e Amora, essa de Thiago Ramil continua o desfile de inesquecíveis canções. Destaque também para o bate papo da família no palco, como se estivessem numa sala da casa no Laranjal, com muitas piadas, bom humor e descontração, principalmente pelos irmãos Ramil mais veteranos.

Nem Pensar, sucesso da dupla Ramil mais famosa do Brasil nos anos 1980, anima a plateia, e com Estrela Estrela, linda composição do Vitor, a emoção paira no ar, com um arranjo parecido com o original, mas com uma divisão vocal magnífica, dividindo a canção com os outros integrantes e uma vocalização no refrão final de arrepiar. Como sempre falo, momentos que ficarão para sempre na música brasileira. Ian Ramil segue o set com Bichinho, música que fez para sua primeira filha, Nina, fazendo um emocionante discurso de paternidade, leia-se, pai babão. Com Casca e Até Não Mais (essa do Almôndegas), Gutcha puxa uma roda de samba no palco animando a tímida plateia. E aproveita pra falar da força das mulheres da família e o quanto ela tem a responsabilidade de representar todas no projeto. Então com uma indefectível introdução no violão, Kledir puxa a maravilhosa Paixão, essa cantada pela apaixonada plateia. Mais um momento ímpar da apresentação e a mostra que até uma música com a palavra fecho ecler pode se tornar um hino. Entre brincadeiras de família, e Vitor mostrando um bom humor incrível, eles seguem com mais um hino, Noite de São João, fazendo a plateia acompanhar com palmas e alta cantoria  Ian Ramil, então, ataca com sua composição (e de Leo Aprato) Artigo 5, uma brincadeira com a constituinte de 1988 e uma crítica a como ela não é respeitada no país.

Com Semeadura, a sina campeira e de luta, aparece numa forte atuação do grupo, com muito bumbo leguero e uma ode à América latina raiz, de povos originários e de todos, fortemente lembrada por Gutcha, que acaba com um não ao marco temporal.

Vira Virou, um dos maiores sucessos da dupla ex-Almôndegas, é mais um momento de extrema harmonia vocal, arranjos refinados de um show de rara beleza e talento. Nesse momento a plateia toma o auditório com luzes de celulares como uma nau seguindo o ritmo da embarcação do barco Ramil. Vale mencionar que não é só no palco que temos o talento da família. Nos bastidores temos Kaio Ramil (filho do Kleiton) na produção executiva, Branca  Ramil, irmã dos três mais velhos do projeto na direção de produção, Karina Ramil, filha do Kleiton como diretora de cena, Isabel Ramil, filha do Vitor na criação dos belos vídeos no telão de fundo e a iluminação com Marcelo Linhares, tio, casado com Branca. Família em peso, com corpo, alma, muito trabalho e talento.

Deu Pra Ti, outro hino não oficial da capital dos gaúchos, faz o auditório e a turma do Bom Fim levantar e lembrar que o solo na gravação original foi feito pelo guitarrista dos Almôndegas, Zé Flávio, que tinha falecido no dia anterior ao show. Fortemente emocionados, os irmãos Kleiton e Kledir falam da importância dele e que os jovens do clã Ramil fizeram questão de homenageá-lo com Canção da Meia-Noite, primeiro sucesso nacional dos Almôndegas e de composição do saudoso guitarrista. Segue Deixando o Pago, a obra-prima de incrível sensibilidade campeira, um  outro hino do cancioneiro de Vitor Ramil, em mais uma fantástica interpretação do septeto.

Em outro momento de muita emoção do show, Gutcha chama alguns jovens da Fase da Vila Bom Jesus, umas das mais abandonadas e humildes da cidade, que fazem parte de um projeto de percussão e a molecada munida de instrumentos, orquestradas pelos seus mestres e pela artista, cantam Tartaruga, canção dela, em um show de ritmo pulsante, visceral e talento da gurizada, fazendo o auditório aplaudir de pé e marcar o ritmo na palma da mão, encerrando assim um show que entra pra história do Araújo Vianna e para a vida daqueles jovens.

Espero que a Casa Ramil volte com mais frequência, produza mais, toque mais (desde antes da pandemia não tocaram mais juntos), porque com certeza é um dos projetos mais encantadores que vi, uma junção familiar de talento, musicalidade, expressão sonora e cumplicidade, um time dos sonhos que transformou aquela sexta de chuva de setembro em uma noite muito agradável, que tivemos o prazer de presenciar e guardar para sempre.

 

Crédito das fotos: Vívian Carravetta

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