Visão Poética da Vida – “Minha Pátria Era Um Caroço de Maçã”

Uma triste realidade é que uma boa parte dos países do mundo já sofreram com alguma ditadura, seja qual for a corrente política.

Para além de supor a realidade, a escritora Huerta Müller buscou conhecer de quem viveu na pele a eterna perseguição da ditatura socialista na Romênia na época da Guerra Fria. Ela conversou com outra escritora, a alemã Angelika Klammer.

O resulta é a obra “Minha Pátria Era Um Caroço de Maçã”, lançada orginalmente no ano de 2014, mas chegou ao Brasil em 2019, com tradução de Silvia Bittercourt e sob a responsabilidade da Editora Globo.

Angelika cresceu em um vilarejo austríaco, já próximo a fronteira com a Romênia, e viu de perto os efeitos nocivos da Segunda Guerra Mundial, embora só tenha entendido depois de adulta. A mãe foi enviada para os campos de concentração, o pai, nazista com orgulho, morreu alcoólatra, o tio morreu em campo e a avó passou uma vida com medo de que alguém descobrisse que o filho tinha livros sobre comunismo.

Isso a fez sentir as coisas de forma diferente, dar outros significados para tudo a rodeava. Na infância tentava entender o que adultos diziam sobre os campos, sobre regras do nazismo, sobre aquelas outras regras, que ninguém fala, mas existe.

Depois se mudou para a Romênia, sentiu a ditadura socialista aos poucos, com alguns sinais dentro do dormitório, ameaças veladas a quem se levantasse contra o regime. Quando adulta trabalhou muito tempo em uma fábrica de máquinas, como intérprete, mas logo começou a ser vigiada de perto.

Angelika já era escritora, com algumas obras publicadas, muito bem quista fora da Romênia, inclusive recebendo vários prêmios, que, por vezes, nem conseguiu ir buscar. Além disso, ela estava rodeada de amigos escritores, logo, todos vistos como ameaças para o governo ditador.

Foram inúmeras as ocasiões onde ela e seus amigos sofreram invasões nos apartamentos, chamadas de “chicanas”, ou foram chamados para interrogatórios sem fim e sem sentido.

Em sua conversa com Huerta, Angelika descreve bem esses momentos, desde sua infância até esses momentos da ditadura socialista, mas da forma mais emocional possível, há momentos em que o leitor se perde em sua linguagem figura e se sente em um poema.

Ela sempre faz comparações, ligações mentais entre as situações vividas e detalhes, extremamente importantes para ela, mas que pode passar despercebido para a maioria das pessoas. As metáforas de Angelika torna a leitura mais fluída e acessível.

O mais interessante são as pontes que ela cria entre a narrativa desses momentos difíceis, como os interrogatórios ou o medo que o regime aplicava, com seu talento para escrever. Aos poucos ela vai relacionando seus métodos com seu cotidiano da época, explicando como e o que a inspira.

Dois capítulos me chamaram atenção, o que ela fala sobre a beleza dentro deste regime e o penúltimo, em que relembra como foi escrever ao lado do amigo Oskar Pastior.

Naquele primeiro ela descreve como as pessoas se vestiam, tanto no vilarejo humilde onde cresceu como na Romênia socialista, dizendo que a beleza era uma ferramenta para uma não alertar os interrogadores, quem a perseguia, mas na verdade não existia. Tudo era muito igual, ninguém poderia se sobressair, então as roupas eram muito simples.

O outro capítulo citado, lembrando Pastior, teve um gosto agridoce. Quando ela fala dele dá para sentir o carinho, a admiração e o quanto ela gostou de ter esses momentos de amizade e parceria profissional com ele. Mas o livro que escreveram juntos era descrevendo o campo de concentração em que ele foi internado, então tem alguns momentos angustiantes, embora ele mesmo parecesse gostar de tocar nestas memórias.

Confesso que “Minha Pátria Era Um Caroço de Maçã” não atraiu minha atenção logo nas primeiras páginas, senti um pouco de dificuldade de começar a ler, mesmo gostando da temática. Talvez o problema tenha sido eu mesma, com algumas coisas a mais na cabeça e pouca concentração.

Mas depois, quando consegui entender a linguagem e a dinâmica de diálogo em que o livro é escrito, consegui entender algumas das nuances e entender os prêmios que as duas escritoras têm em seus currículos (Huerta ganhou Nobel de Literatura em 2009).

Uma impressão que tive ao longo da leitura era que Angelika era uma senhorinha já, acredito que isso veio por ser uma história (real) ambientada em um lugar distante e que parece tão surreal, que imagina ter sido há muitas décadas.

Daí eu li a pequena biografia dela na orelha do livro, dizendo que ela nasceu no ano de 1960, ou seja, ela ainda está completando 60 anos. Mais ainda, lembrei que a minha mãe nasceu em 1962, mas em uma realidade bem diferente, embora também rural.

É muito louco (não encontrei outra palavra) quando fazemos essa análise, são experiências completamente diferentes, mas vividas na mesma época, resultando em pessoas únicas de sua forma particular!

 

Até mais.

Mais do NoSet