Uma pitada de sorte: Fabiana Karla se destaca em ótima comédia sem apelação.

Valer-se de críticas fundamentadas em estereótipos é algo péssimo para o crítico e para seu público. A imparcialidade é vital para que o leitor, espectador ou ouvinte tenha uma base na escolha daquilo que será seu entretenimento, porém a verdade é que ser totalmente isento é algo cada vez mais difícil.

O cinema nacional evoluiu muito ao longo dos últimos 30, 40 anos. Saímos do limbo das pornochanchadas para uma produção nacional que gerou destaques como Central do Brasil, Tropa de Elite, Carandiru, O Auto da Compadecida, Minha Mãe é uma Peça, Os Farofeiros, entre outros. Temos grandes obras em todos os gêneros, porém é fato que a comédia brasileira teve uma nítida queda de qualidade.

Muitos são os fatores que levaram ao declínio da comédia no cinema nacional: a inserção de “celebridades” para atuar, adaptação de livros voltados ao público infanto-juvenil (ainda que isso sempre tenha ocorrido), a gradual inserção de cenas cujo erotismo destoa, piadas apelativas, ideologias e até mesmo uma militância política. Óbvio que o humor oscila entre os mais variados assuntos, desde a sexualidade até a política, mas não há como negar que são poucas as obras que souberam abordar esses e outros assuntos sem que pareçam apelativos.

Entretanto, nem só de produções fracas vive nossa comédia na Sétima Arte. Estreia hoje em grande circuito a comédia “Uma Pitada de Sorte”, cuja protagonista é a atriz Fabiana Karla, a Cacilda da Nova Escolinha do Professor Raimundo.

Antes de prosseguirmos na análise do filme, vamos curtir o trailer.

Humor leve e bem aplicado.

Uma Pitada de Sorte se destaca de muitas outras produções de humor por vários motivos. Entre eles, o roteiro muito bem amarrado escrito por Regiana Antonini, Álvaro Campos e Pedro Antonio; também cabe citar as ótimas atuações do trio principal composto pela própria Fabiana Karla (a Pérola), Mouhamed Harfouch (Lugão) e Ivan Espeche (Diego), isso sem falar do restante do elenco que colabora de forma ímpar na condução da história. Para ser bem honesto, cada ator e atriz deste filme fez questão de entregar o seu melhor desempenho para que o espectador tenha a melhor experiência possível no cinema… e eles conseguiram.

Diferenciais.

A trama de Uma Pitada de Sorte tem um diferencial que o faz se destacar de muitas outras comédias que o cinema nacional entregou recentemente: a preocupação em entregar um filme para a família. Isso, esclareço, não é sinônimo de um filme moralista ou chato. Ao contrário, o longa-metragem é extremamente divertido e tem “lições” muito legais na trama, incluindo a preocupação com o respeito à família, a quebra de preconceitos, uma clara explicação sobre os malefícios do estereótipo, superação e o perigo do sucesso, entre outras.

Quero também parabenizar o elenco pelo entrosamento e cooperação, ainda que haja diversas gerações interagindo. Fabiana faz o papel de irmã do jovem Fred, interpretado pelo ótimo JP Rufino. Também contemplamos a interação entre as personagens de JP e Fabiana com a veterana atriz Jandira Martini, cujo papel é o da dona Gina, mãe desses dois irmãos. A equipe que atuou no set de filmagem que representou o estúdio de televisão é outra divertida descoberta, onde posso destacar a atuação de Regiane Alves (interpretando a diretora Margô). Outro ponto positivo, mas do núcleo da Pérola é a atriz Flávia Reis, cuja interpretação dá vida à divertida (e fofoqueira) Raylane. 

                       A atriz Flávia Reis e o ator Gigante Léo

O poder corrompe?

Peço que compreendam que a palavra “poder” está em seu sentido mais amplo, isto é, pode ser financeiro, psicológico, hierárquico, oriundo da fama ou outra forma qualquer. Em suma, ter poder é um fator para que a verdadeira face de uma pessoa venha à tona? O poder realmente corrompe?

Com base nas perguntas acima, os roteiristas iniciam a trama com as agruras da carismática Pérola, uma sous chef (ajudante de cozinha) cuja aspiração é a de se tornar uma verdadeira chef de cozinha. Apesar dos esforços, ela tem que se desdobrar em uma jornada dupla entre o restaurante e a equipe de festas da mãe, um verdadeiro empreendimento familiar. É por amor à mãe – e reconhecimento ao seu esforço – que Pérola vive no caos dos dois empregos.

Em meio a isso, uma dupla de clientes surge para um jantar, mas o chef está ausente. Por conta própria (já que ela estava no comando), Pérola faz seu próprio prato para servir ao casal, mas isso não acaba bem. Como resultado, a sous chef perde seu emprego, restando-lhe apenas o trabalho na equipe de festas. Mas nada está tão rum que não possa piorar, pois Pérola opta por não contar a verdade para sua mãe.

Creio que neste momento o leitor estará perguntando: mas o que isso tem a ver com o “poder” do título acima? Bem, como pouca confusão é bobagem, Pérola é aceita para fazer um teste como auxiliar de um programa de cozinha na TV. O apresentador é ninguém menos que o homem que esteve em seu restaurante, o Chef Diego. Pérola aceita, agrada os produtores e começa uma nova jornada na TV… sem citar nada para sua mãe e mantendo os trabalhos nas festas. Ah! O local da gravação do programa é bem distante da casa dela e, por isso, o cansaço cresce brutalmente. Esta é uma receita infalível para ter muitos, muitos problemas.

E é óbvio que não para por aí. Conforme ela se estabelece – por meio do talento e da simpatia – no programa, Diego passa a ver nela uma provável concorrente. Lembro a todos que Diego é o Chef (e o Chefe) do programa, uma pessoa com poder para acabar com a breve carreira de Pérola na televisão.

Como disse, o poder corrompe. Mas o poder tem também uma sedução capaz de remover uma pessoa do caminho correto, levando esta a cometer erros difíceis de corrigir.

O Poço e o Pêndulo.

Com a ajuda dos amigos tudo fica mais simples. Assim acontece com nossa protagonista, ainda que o “mais simples” não seja tão simples. De qualquer modo, Pérola fica durante uma boa parte da trama entre a cruz e a espada ou, parafraseando Alan Poe, entre o Poço e o Pêndulo. Isso, contudo, serve para dosar ainda mais a trama com ótimas cenas de humor, além de acrescer com reflexões sobre a importância do núcleo familiar, o poder das verdadeiras amizades e estabelecer uma crítica severa àqueles que possuem fama e riqueza, porém não se mostram tão dignos.

Outro ponto vital é o lembrete sobre a importância de nossas origens. Se um dia o sucesso bater à nossa porta, cabe sempre recordar quem esteve ao nosso lado nos momentos de “perrengue”. Amigos que surgem por causa de dinheiro e fama são, via de regra, passageiros, muitas vezes fúteis e exploradores.

Resumidamente, valorize quem realmente o ama…

Sonhos.

Esse é um filme sobre sonhos e como torná-los realidade. Mais do que isso, Uma Pitada de Sorte deixa evidente que a sorte não é tão somente aquela aparente. A sorte está em vários detalhes que o cotidiano nos faz esquecer: os amigos, a família, nossa saúde, o tempo que dispomos, a paciência de quem convive conosco. São várias as faces da sorte e é preciso reconhecê-las.

Por fim, um ponto que não posso deixar de evidenciar é a forma como roteiro e direção conduziram o casal Pérola e Lugão em uma jornada que rompe barreiras e mostra que podemos ser felizes na simplicidade e com nossa própria aparência. Estereótipos e preconceitos nunca terão força sobre pessoas que realmente nutrem o amor próprio. Pérola é um claro exemplo disso.

Assistam ao ótimo Uma Pitada de Sorte que já está em cartaz nos melhores cinemas.

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