Literatura e Guerra – “Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata”

Palavras escritas em um papel podem ter poderes diferentes nas mãos de pessoas diferentes, a literatura é um elemento essencial e, por isso, é uma das primeiras limitações em momentos de repressão. A Alemanha Nazista confiscou inúmeros títulos nos locais onde invadiu na Segunda Guerra Mundial, “A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata” começa com essa premissa.

O longa de 2018 é a adaptação cinematográfica do livro homônimo assinado por Mary Ann Shaffer e Annie Barrows. O roteiro adaptado é de Don Roos, Kevin Hood e Thomas Bezucha, a diretação é de Mike Newell. O filme está no catálogo nacional da Netflix.

O pós-Segunda Guerra Mundial foi uma fase difícil de enfrentar para maioria dos ingleses, alguns estavam conseguindo reerguer, especialmente em Londres, apesar das muitas memórias tristes e perdas. É o caso de Juliet Ashton, uma escritora que estava construindo uma carreira brilhante ao lado do amigo e editor Sdiney Stark.

Por outro lado, na ilha de Guernsey as coisas eram mais duras. Esta fora invadida pelos nazistas durante a guerra, o que fez a sua pequena população sofrer com muitas restrições, incluindo aí a socialização e a alimentação. Eles só podiam consumir os alimentos que sobravam dos soldados (mesmo sendo os próprios moradores os produtores), sobrando, basicamente, batatas.

A reunião de pessoas também era altamente regulada, era necessário que fossem parte de um clube registrado para que pudessem se encontrar. Festas e jantares “aleatórios” não poderiam ocorrer.

Mas parte da vizinhança conseguia “driblar” as regras, sob a liderança da corajosa Elizabeth McKenna. Ela tinha dessas personalidades que conquistavam a todos, aproximava as pessoas e, assim, conseguiu reunir Amelia Maugery, Isola Pribby, Dawsey Adams e Eben Ramsey. Aos serem encontrados pelos soldados em uma reunião particular eles disseram que faziam parte de uma sociedade literária, a de Torta de Casca de Batata (porque Eben havia feito uma torta com o único ingrediente que tinha).

Depois disso eles tiveram que encontrar livros e fazer reuniões discutindo-os, o que eles passaram a gostar. Eles pegaram escondidos na biblioteca interditada da cidade, muitos deles eram doações, em um deles tinha um endereço de Londres, a de Juliet (isso fará sentido daqui a pouco).

A ação dos alemães era violenta em Guernsey, a situação se agravava e isso fazia com que Elizabeth se revoltasse cada vez mais e tentasse ajudar o máximo de pessoas ao seu redor. Em uma dessas tentativas ela foi presa e simplesmente desapareceu.

Passados 05 anos do desaparecimento e do fim da guerra Dawsey envia uma carta para o endereço que encontrou em seu livro preferido, pedindo intermédio para comprar um livro em especial. Juliet recebeu essa carta, comprou o tal livro, mas ficou intrigada com a história, enviando, junto com o livro, uma resposta cheia de novas perguntas.

Eles começaram a trocar cartas e ela, escritora nata que é, sentiu que precisava ir até Guernsey conhecer essa história curiosa. Ela tinha a desculpa perfeita, Sidney havia recebido uma proposta para que ela escrevesse uma série de artigos sobre sociedades literárias inglesas. Juliet foi para a pequena ilha para passar um final de semana e, assim, participar de uma reunião da Sociedade Literária da Torta de Casca de Batata.

Mas aquilo se tornou maior do ela. Mesmo o noivo dela e Sidney insistindo para ela volta para Londres e para sua vida, ela sentia que precisava estar ali. Não era só aquela sociedade literária, a qual já era uma família, que contava, era toda a ilha e os acontecimentos enquanto estavam sob o poder alemão, incluindo os desaparecimentos.

Ela pode ajudar a procurar Elizabeth, para dar um descanso para eles, colocar um fim nas dúvidas, mas ela não foi autorizada a escrever e publicar sobre eles, a história era bonita, mas dolorosa demais para eles. Eventualmente ela voltou para Londres, mas não se sentia ela mesma, não sentia que pertencia àquele lugar, àquela vida de luxos e privilégios (que o noivo tinha).

Além disso, ela precisava escrever sobre a sociedade literária, senão ela nunca poderia escrever sobre mais nada. Ela escreveu uma história linda, impulsionada pelos fortes sentimentos que aqueles dias e aquelas pessoas provocaram nela, especialmente Dawsey, mas cumpriu a promessa de não publicar. Aquele rascunho representava uma etapa vencida na sua vida, agora ela poderia amadurecer seu estilo e escrever o que quisesse.

Mesmo essa história sendo fictícia, acredito que muitas ilhas e cidades tenham passado por isso naquela época, muitas Elizabeth’s desapareceram pelo simples fato de querer ajudar seres humanos, aproximas pessoas em tempos sombrios. E é poético imaginar que livros tenham sido elementos essenciais para essa aproximação.

Foi essa ligação que chamou atenção de Juliet. Ela sabia o quão importante os livros eram, sempre sonhara em ser escritora e foi a profissão que a salvou de alguma forma. Logo no início da guerra ela perdeu os pais, estaria sozinha no mundo se Sidney não lhe fosse quase um padrinho/tio para ela, ele a ajudou na vida e na carreira, sendo um amigo fiel sempre, embora não tivesse entendido o impulso de Juliet para conhecer a ilha.

Essa sensação de que família também pode ser construída também permeia toda a história. Sidney não tinha nenhuma ligação sanguínea com Juliet, mas ainda assim era a única família dela. O mesmo vale para o caso dos vizinhos Eben, Dawsey, Isola, Amelia e Elizabeth, eles se escolheram para enfrentar o momento, sem segundas intenções.

Mesmo com todo esse peso emocional o filme é delicado, gostoso de assistir, contando com belas paisagens e figurinos de encher os olhos.

Sobre o elenco, já falei de, pelo menos, 05 atores e atrizes que o formam: Lily James, Jessica Brown Findlay, Matthew Doode, Penelope Wilton e Tom Courtenay. Os quatro primeiros fizeram parte, em momentos diferentes, de “Downton Abbey”. Mas vou resumir por aqui, porque eles foram essenciais no filme.

Lily James deu vida Juliet Ashton e talvez ninguém conseguisse fazer jus a essa personagem como ela fez, desde o sorriso doce até a insistência de seguir sua curiosidade. Jessica Brown Findlay é Elizabeth McKenna, mais uma escolha perfeita, mais uma vez mostrando o quão intenso é o olhar dela.

Essas duas atrizes são impecáveis, não sei nem descrever, assisto-as até em filme de terror … Lembrando que Lily James é Elizabeth Bennet em “Orgulho e Preconceito e Zumbis” (ainda não assisti porque não encontrei).

Matthew Goode é Sidney Stark, com o tom de cinismo, drama e carinho necessários. Penelope Wilton é Amelia Maugery, pode-se dizer que ela é a matriarca do grupo, apesar de não demonstrar suas próprias dores ela acalenta a dos outros.

Tom Courtenay é Eben Ramsey, quem faz a torta que dá o nome à sociedade literária que vira família, sendo cativante de seu jeito único. Ele não era de “Downton Abbey”, mas ele aparece em “Os Astronautas”, por isso que já falei dele por aqui.

Para além desse time, o elenco conta com:

Michiel Huisman, como Dawsey Adams. Embora essa tenha sido a primeira vez que eu prestei atenção nele, Huisman é bem conhecido, esteve em filmes como “A Jovem Rainha Vitória”, “Guerra Muncial Z”, “A Incrível História de Adaline” e séries como “Nashville”, “Orphan Black” e “Game of Thrones”.

Glen Powell, como o noive de Juliet, Mark Reynolds. Ele é conhecido por filmes como “Estrelas Além do Tempo” e “Set It Up” e séries como “Scream Queens”.

Katherine Parkinson, como Isola Pribby, cujo trabalho mais conhecido é “Os Piratas do Rock”.

 

Para finalizar aqui vai um trecho de uma das cartas de Dawsey, para ilustrar o quão importante era essa sociedade literária: “Nossas noites de sexta de clube livro se tornaram refúgio para nós. Uma liberdade particular para sentir o mundo ficando mais sombrio ao nosso redor, mas nós só precisávamos de uma vela para desenrolar novos mundos. Foi isso que encontramos em nossa sociedade”.

Se isso não for família eu não sei mais o que é.

Até mais!

 

Imagem em destaque é do IMDb.

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