Justiça Ancilar

Comprei o livro Justiça Ancilar sem querer. Como assim? Estava zanzando pela Amazon, olhando alguns lançamentos e, inadvertidamente, apertei o botão “compre agora com 1-clique”. Não me peça para explicar como consegui essa façanha. Antes de cancelar a compra, li o resumo e fiquei espantado com a quantidade e com a expressão dos prêmios que o livro ganhou. Convenci-me a deixar que o acaso triunfasse e não desfiz o meu erro. Não sou dado a esoterismos, mas também não deixo que as bruxas saibam disso. Fato é que o acaso tinha razão: era um livro que eu deveria ler.

Justiça Ancilar não é uma ficção científica fácil. Ela é original em diversos pontos e esta originalidade cobra um preço. O leitor leva quase metade do livro para compreender e se acostumar aos parâmetros e ao contexto no qual é contada a história.

O livro é quase todo narrado em primeira pessoa por Breq, uma inteligência artificial inserida em um corpo biológico. Originalmente, Breq era parte de uma coletividade, gerenciada por uma nave de guerra, a Justiça Ancilar, de onde vem o nome do livro. Algo como uma companhia do exército que compartilha uma mesma mente. Similar, por exemplo, ao conceito dos Borg, da série Jornada nas Estrelas.

       Somente esta ideia de mente compartilhada e a forma de definição de uma identidade já valem a leitura. Ann Leckie aborda a questão de forma inteligente e sensível. Há outras questões e desdobramentos complexos, como o papel dos sentimentos, da arte, da religiosidade, das convenções sociais e da disciplina militar nesta inteligência racional e comunitária. O caminho utilizado para a discussão é, ainda, o inverso daquele que estamos acostumados. Aqui, uma inteligência (nascida) artificial torna-se carne. Há ecos de O Homem Bicentenário, de Issac Assimov, e, mais remotamente, de Pinóquio. No livro, contudo, a inteligência artificial está satisfeita com a sua condição e não tem o desejo de se “corporificar” em algo biológico. Faz isso apenas para cumprir as suas funções.

A nave Justiça Ancilar pertencia ao “Império Radch”, uma organização política totalitária, militarista, expansionista e estratificado em grandes casas familiares, que lembram tanto uma organização nobiliárquica medieval quanto o livro Duna, de Frank Herbert. O livro inicia 19 anos depois de a nave ser destruída, quando apenas um dos seus “desdobramentos” orgânicos, Breq, salva-se. A partir daí ela vaga em busca de vingança. Há características dos

Ann Leckie

clássicos cavaleiros solitários de westerns americanos, ou, antes, dos ronins de Kurosawa, vagando e enfrentando aventuras, enquanto anseiam por sua redenção pelas armas.

Na linguagem dos radchaai não há distinção entre os gêneros masculino e feminino, outra das boas ideias do livro. Você não identifica se o personagem é homem ou mulher, a não ser que ocorra a interação com personagens de outros planetas e culturas. Esta forma narrativa é bem mais fácil de desenvolver em inglês do que em português e gerou diversas dificuldades para o tradutor Fábio Fernandes. Para nossa sorte, ele se desincumbiu muito bem delas, conseguindo preservar a essência da ideia de Ann Leckie.

O “Império Radch” é comandado por Anaander Mianaai, uma ditadora que se desdobra em diversos corpos. Ela é o alvo da vingança de Breq, por motivos que, obviamente, não revelarei. Logo no início da aventura, Breq salva da morte a capitã Seivarden, que encontra por acaso, inconsciente, em um planeta ermo. A capitã havia permanecido congelada por mil anos, depois de uma punição disciplinar e sofre para se adaptar à nova realidade, acabando por se tornar uma viciada. Há uma tensão no relacionamento de Breq e Servaiden, que é utilizada como canal para que Ann Leckie conte um pouco da história do império e da sociedade dos radchaai. A trama conta com uma última e trágica personagem — a tenente Awn — por quem a nave Justiça Ancilar desenvolveu uma afeição intensa e que será o pivô dos fatos que levam à sua destruição.

        O livro possui problemas de ritmo. A parte inicial, que se estende por mais da metade das suas páginas, é lenta. A parte final, acelerada demais. Esta discrepância, embora não seja elogiável, não chega a comprometer o prazer da leitura. O retardo inicial decorre da necessidade de explicar os conceitos econômicos, sociais, políticos e religiosos do universo onde se desenvolve a triologia “Ancillary”, que é complementada pelos livros Ancillary Sword e Ancillary Mercy, ainda não traduzidos para o português. Além destes, Ann Leckie lançou contos e outro romance, Provenance, no mesmo universo. Já a parte final é uma clara guinada em direção à dinâmica de aventura, na tentativa de prender o leitor à trilogia.

Justiça Ancilar ganhou os prêmios Hugo, Nebula e Arthur C. Clarke, entre outros, o que, por si só, fala sobre a sua qualidade. Como todo o bom livro de ficção científica, retira o leitor do marasmo dos seus problemas cotidianos e força-o a refletir sobre novas questões.

 

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