Crítica: Hebe – A Estrela do Brasil

No ano de 2002, o jornalista e historiador, Paulo Cesar de Araújo, escreveu um livro fundamental na história da cultura popular brasileira: Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar. O livro conta histórias escondidas e quase inéditas de como cantores popularescos dos anos 60 e 70 foram perseguidos, cada um a sua maneira, da censura da ditadura. Nomes como Benito di Paula, Fernando Mendes, Odair José, Agnaldo Timóteo e Waldik Soriano, mesmo não pertencendo a nata de protesto da elite da MPB, também foram fustigados pelas navalhas dos censores. Histórias pouco conhecidas e até surpreendentes. O filme Hebe – a Estrela do Brasil (2019) também nos surpreende por contar histórias quase esquecidas da “rainha da televisão brasileira” e de um país que se abria à democracia e que ainda perseguia quem não andava na linha desejada dos costumes e dos poderosos, no caso a própria Hebe.

O filme conta uma fase da vida da apresentadora. Mais ou menos entre 1985 e 1987, onde ela abandona a Rede Bandeirantes (na época tendo como chefão Walter Clark) e assina com o SBT de Silvio Santos, decolando ainda mais sua sempre ascendente carreira. Mas também foi um tempo em que se envolveu em diversas polêmicas, perseguida por vários lados, com sua atitude corajosa enfrentou uma a uma até firmar seu espaço e sua tranquilidade. Conta em paralelo sua vida pessoal vivendo um casamento de altos e baixos com Lélio, um homem que vivia de amor e ciúme doentio pela famosa esposa, além de seu relacionamento com Marcelo, filho único de seu primeiro casamento, garoto tímido e introspectivo sempre disposto a defender sua mãe.

Talvez o maior acerto do filme, ao invés de partir para uma longa e rasa biografia da Hebe (tarefa quase impossível de se fazer em apenas duas horas), foi ter usado uma fase da vida da loira para ilustrar seu perfil. O roteiro de Carolina Kotscho e a direção eficiente de Mauricio Farias, conseguem em duas horas e usando apenas três anos da vida dela nos dar um panorama básico do que foi Hebe Camargo. Méritos para Andréa Beltrão que está excelente. Ela não imita simplesmente a Hebe, ela cria uma Hebe ao seu jeito, passando a segurança e o poder da personagem sem em nenhum momento soar caricato ou forçado. Marco Ricca também da vida ao às vezes amável outras vezes descontrolado Lélio de uma forma muito marcante.

A reconstituição de época beira o impecável, uma amostra de como eram os estúdios televisivos dos anos 80, roupas e penteados e principalmente o glamour da apresentadora que não poupava em jóias, roupas e sapatos, além de uma trilha sonora deliciosa com clássicos populares daqueles anos.

Mas falando de Hebe, ela era realmente uma mulher diferente. Ao mesmo tempo em que era amiga pessoal de Paulo Maluf, era capaz de ao vivo em rede nacional falar poucas e boas para a classe política enfrentando de filhotes da ditadura até símbolos da democracia da nova república. Mesmo vivendo em meio ao luxo e em festas às vezes fúteis nunca deixou de ser uma mulher independente, a frente do seu tempo, que conquistou sua fortuna e carreira unicamente com seu talento. Ao mesmo tempo em que usava a religiosidade forte com suas santas e sua rígida devoção, enfrentava a igreja tradicional pra defender o livre direito das pessoas de serem felizes e serem deixadas em paz, independente do estilo de vida, credo e principalmente opção sexual. Em síntese, uma mulher que poderia ser considerada para muitos uma reacionária, mas que tinha uma cabeça progressista como poucos na época.

Hebe – A Estrela do Brasil veio para ajudar ainda mais o reconhecimento da saudosa apresentadora. Uma digna homenagem à rainha da televisão brasileira e mostrando que mesmo num país que se abria à democracia, resquícios morais, inquisidores, preconceituosos e recheados de abuso do poder ainda pingavam até em quem parecia que nada tinha que ver com aquilo tudo, mas tinha o que muitos não tinham: sinceridade e respeito. Essa era Hebe Camargo.

Elenco: Andréa Beltrão, Marco Ricca, Caio Horowicz, Danton Mello, Gabriel Braga Nunes, Otávio Augusto, Claudia Missura, Karine Telles, Daniel Boaventura

Direção: Maurício Farias

Sinopse: São Paulo, anos 80. O Brasil vive uma de suas piores crises e Hebe aparece na tela exuberante: é a imagem perfeita do poder e do sucesso. Ao completar 40 anos de profissão, perto de chegar aos 60 anos de vida, está madura e já não aceita ser apenas um produto que vende bem na tela da TV. Mais do que isso, já não suporta ser uma mulher submissa ao marido, ao salário, ao governo e aos costumes vigentes. Durante o período de abertura política do país, na transição da ditadura militar para a democracia, Hebe aceita correr o risco de perder tudo que conquistou na vida e dá um basta: quer o direito de ser ela mesma na frente das câmeras dona de sua voz e única autora de sua própria história.

Entre o brilho da vida pública e a escuridão da dor privada, Hebe enfrenta o preconceito, o machismo, o marido ciumento, os chefes poderosos e a ditadura militar para se tornar a mais autêntica e mais querida celebridade da história da nossa TV: uma personagem extraordinária, com dramas comuns a qualquer um de seus milhões de fãs.

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