Eloy Casagrande e Hanysz em Porto Alegre com abertura do Atomic Elephant

Obviamente que os anos da pandemia são fadados para ir para o limbo da história. Com um mundo parado por causa de um vírus, um planeta dividido, pessoas morrendo sem ar e tratamento, a sanidade mental da população indo para um buraco sem fundo e a economia se esfacelando, uma classe foi uma das mais prejudicadas com todo esse tenebroso cenário: os artistas. Com casas noturnas fechadas, aglomerações proibidas, a classe artística ficou atada, mas se existiu algo bom nessa loucura toda, foram algumas colaborações e encontros de músicos. Sexta passada, no Teatro do Ciee, em Porto Alegre, o NoSet teve a honra de cobrir dois projetos instrumentais que são literalmente filhos da pandemia. Tanto a banda de abertura, o Atomic Elephant, crias do Rio Grande do Sul, quanto Eloy Casagrande e Hanysz foram ideias e junções de talento que, devido à necessidade de fazer arte, surgiram na pandemia e agora, no palco, mostram suas garras.

O show teve como abertura o Atomic Elephant. Composta por músicos tarimbados, de Porto Alegre, o guitarrista Renato Osorio (ex Hibria e Scelerata), Gustavo Strapazzon no baixo (Scelerata) e o caxiense Thiago Caurio na bateria (Astafix, De Ros, Paulo Schroeber, Keep them Blind), o trio, com seu trabalho praticamente impossível de demominar o estilo, tamanha versatilidade das composições, fez um eficiente show. Abriram as honras com duas excelentes músicas do primeiro Ep da banda, Nuclear Orgy e Verzul. Com uma técnica apurada, mas sem ser aquela fritação óbvia, com guitarras modernas com riffs certeiros, paredes sonoras robustas, uma cozinha afiada, a banda desfila entre o peso e o groove. Um liquidificador sonoro que mistura Steve Vai, Devin Townsend, Led Zeppelin, Rush, Jeff Beck, brasilidade, influência ibérica, metal clássico e moderno. Ecletismo presente na terceira música, que começa com uma jam que mistura muita grooveria com reggae, Led e acaba com Random Stupidity, essa com toques Djent e baixo em destaque de Gustavo. Mais uma demonstração da dificuldade de definir o que seriam os elefantes atômicos . Destaque para a presença de palco de Renato Osorio, solto, alegre, falante nas apresentações da banda e com perfeita simetria com Gustavo e Thiago. Âmago vem em sequência, música do baterista Thiago Caurio. Aliás, precisamos falar sobre Thiago. O músico simplesmente tem uma sensibilidade percussiva maravilhosa e ao mesmo tempo uma pegada agressiva. Transforma rudimentos e passagens complexas parecerem simples, além de um ecletismo nas quebradas, como eu mesmo brinquei com ele, um mix de Neil Peart com Stewart Copeland, mas com total cara de Thiago. Um gigante baterista. Eles mandam ver depois com uma nova composição com nome provisório de Funk, com um arranjo cheio de nuances mostrando o quanto é difícil definir o estilo musical da banda, uma miscelânea sonora autêntica, de pura qualidade.

A próxima é Shut Up, essa do Renato, onde ele demonstra toda sua virtuosa técnica e seu felling cada vez mais presente, metal moderno que dá gosto de ouvir.  2020, mais um petardo de peso, com uma cama sonora genial, com solos certeiros de Renato Osorio, com um sentimento absurdo, mas sem perder de vista a técnica. A cozinha mais uma vez dando um show de precisão, Gustavo, com seu característico baixo agudo estalando, fazendo a diferença. Enterro dos Ossos, nova composição, é mais um retrato fiel do que é a banda, mistura Jeff Beck, samba, percussão brasileiríssima, baião, flamenco, uma salada mista absurda, com uma sonoridade hipnótica. Baita música. Dumbo’s Revenge fecha o espetáculo instrumental, essa também com lindas linhas melódicas de cordas, um quê de Stevie Wonder, bateria nervosa quando preciso, grooves de baixo, quebradas e muita melodia. A cara da banda, essa maratona sonora de difícil definição. Excelente experiência que faz bem para os ouvidos.

Mas quem fecha a noite é o projeto do super baterista Eloy Casagrande, baterista do Sepultura e considerado por diversas publicações o melhor baterista do mundo. E o prodígio músico, na pandemia, se uniu a outro prodígio na guitarra, o catarinense João Hanysz. A dupla tem um Ep chamado Edge of Chaos, uma mistura de rock progressivo moderno, com guitarras percussivas, com timbres arrebatadores, riffs com cara de trilha de games, e é claro, a bateria absurda do Eloy. Tentative, do Ep da dupla, abre o show com aquela batera com precisão e pegada única de Casagrande, e com Hanysz abusando de riffs fortes e sua técnica virtuosa, solos de belas harmonias e abusando de sonoridades diversas. Hope Refuge também segue a linha da primeira, com diversos climas, guitarras modernas e Eloy mostrando toda sua agressiva técnica. Alias, é nítida a diferença nesse projeto das versões de estúdios quase límpidas para as versões ao vivo, onde o baterista mostra todo seu tribal estilo. Muitas linhas pré- gravadas deixam o guitarrista coberto para mostrar seu lado Djent e feeling absurdo. Depois dessa porrada sonora Eloy pega o microfone e apresenta o projeto, brinca com a plateia e anuncia as próximas quatro músicas. Deptinas, outra cassetada pesada segue o show, seguida de Unlikely, My Cold e Hereditário. Confesso que nessa parte do show algumas músicas eram até meio repetitivas e maçantes e a bateria do Eloy se sobressai muito sobre as bases da guitarra do seu parceiro, talvez consequência do minimalismo do equipamento, enfim. A parada e o anúncio das próximas fez bem, o som melhorou e eles vieram com a ótima To Not  Belong do Ep, com mais um show de feeeling e sonoridade de guitarra moderna do Hanysz. A apurada técnica do rapaz, sabendo usar elementos modernos, com solos melódicos e inserções bem colocadas nas composições, além do timbre incrível. Eloy dispensa comentários.

Um cover de Lady Gaga, Telephone, é mais um golaço da dupla, numa versão enérgica e super criativa em cima do sucesso da cantora. Nowhere, do Ep, segue o set, em uma apresentação absurda da técnica do Eloy, numa quebradeira que quase derrubou o lindo teatro do Ciee, musicão feito para o baterista, com o guitarrista mais coadjuvante. Opaque é uma aula de progressivo anos 2020, com uma bateria a la Neil Peart (sempre ele…), lembrando muito o Rush e guitarras percussivas pesadas e solos melódicos e extremamente técnicos. Um comentário é que talvez pela pouca idade e experiência, o que tem de talento Hanysz ele tem de timidez e discreta presença de palco, o que tornava, às vezes, o show quase um retrato estático, mesmo com um belíssimo jogo de luzes.

Para encerrar o show a dupla toca Resolution, essa mais pesada que as outras, com direito a solo arrebatador de Eloy para coroar o show e delírio das quase 200 pessoas entusiastas do trabalho da dupla. Porto Alegre teve uma sexta-feira santa privilegiada e quem pode prestigiar viu dois projetos pandêmicos de alto quilate, modernos, ecléticos, virtuosos, sem ser entediantes e mostrando que a força do palco é muito importante para o vigor da música (muitas músicas pareciam outras em comparação com os Eps) e que lugar de músico é tocando para pessoas reais e mostrando que o som pesado e instrumental, apesar de ser sabotado (ou autossabotado) está muito bem representado.

 

Crédito das fotos: Lauro Roth

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