Crítica – Sombras no Deserto
- Publishednovembro 13, 2025
Um filme de terror em que Nicolas Cage interpreta o pai de Jesus Cristo tinha tudo para ser uma galhofa. No entanto, este não é o caso de Sombras no Deserto (The Carpenter’s Son, 2025). Pelo contrário, o longa consegue ter uma potência e uma densidade inesperada ao discutir fanatismo religioso e a dualidade de profano vs. sagrado, na luta da luz contra as trevas.
Noah Jupe interpreta O Menino, um garoto com poderes sobrenaturais. Ele é filho de A Mãe e de O Carpinteiro, interpretados respectivamente por FKA Twigs e Nicolas Cage. Os pais fazem o possível para blindar O Menino dos perigos do deserto: desde pessoas que temem o poder do garoto até tentações de demónios. Os pais do Menino têm entendimentos diferentes do que é melhor ao filho: enquanto o Carpinteiro deseja que a família tenha uma vida nômade, a Mãe acredita que o Menino precisa criar raízes em algum lugar. Ela acaba vencendo, e a família decide se alojar em uma pequena vila no deserto. Lá, O Menino começa a ser tentado a aproveitar os prazeres terrenos pelo Estranho, interpretada por Isla Johnston.
Sombras no Deserto é baseado no evangelho apócrifo de Tomé, um evangelho não canônico, o que dá ao filme a liberdade criativa para contar essa história sob uma ótica ousada. É importante dizer que essa abordagem pode ser chocante, podendo não agradar cristãos mais fervorosos. Essa polêmica não é escondida e, na verdade, o longa utiliza-se dela para gerar um interesse inicial. No entanto, o diretor e roteirista Lotfy Nathan não se apoia apenas nisso: ele aprofunda essas questões com convicção e inteligência.
Apostando em uma estética fantástica e no terror, o filme cria um clima imersivo e perturbador. A fotografia mergulhada nas sombras, as vozes sussurradas em línguas desconhecidas e o terror corporal estabelecem uma tensão constante, criando com a sensação de que algo profano está à espreita, pronto para atacar. Essa atmosfera dialoga perfeitamente com a temática bíblica de provações e tentações. É notável como o longa pega um tema explorado há milênios e o reapresenta de maneira original. Não há acomodação: visualmente, o filme é inventivo e busca provocar o espectador com a sensação de estar testemunhando o extraordinário.
É verdade que, em alguns momentos, o longa apela para o choque raso. Imagens de mutilações, tortura e excrementos por vezes parecem apenas repetir um ponto já bem estabelecido, estando ali apenas para nos lembrar que estamos assistindo a um filme de terror. Ainda assim, Sombras no Deserto discute com habilidade como bem e mal habitam um terreno muito mais cinzento do que a retórica dos autoproclamados puros quer admitir. As cenas das aulas do líder religioso, mecânicas e baseadas em crenças radicais, ou as tentativas de O Carpinteiro de impor sua fé à força mostram como atitudes autoritárias empurram O Menino na direção das tentações. Em contrapartida, os momentos mais heroicos surgem quando os personagens se aproximam de sua humanidade.
Grande parte da força dramática do filme vem da atuação de Nicolas Cage. É curioso como, em sua primeira aparição, quase rimos, já que Cage se tornou um personagem folclórico nos últimos anos. Mas sua performance rapidamente desmonta essa ideia: ele entrega um personagem repleto de dúvidas e falhas, mas obstinado em sua missão. Já Noah Jupe e FKA Twigs têm atuações mais inconstantes. Enquanto Jupe por vezes esbarra numa performance forçada demais, Twigs entrega uma atuação excessivamente etérea. Ainda assim, ambos têm presença marcante e contribuem para o impacto causado pelo longa.
Sombras no Deserto é um filme surpreendentemente criativo e impactante. É claro que contar com Nicolas Cage nesse contexto tão inusitado já rende um interesse imediato, e o filme sabe disso. Mas o longa não se apoia apenas nesse trunfo e faz questão de ter personalidade própria. No fim, a curiosidade inicial causada por esta mistura inusitada é apenas a cereja de um bolo muito bem feito.