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CRÍTICAS

Crítica – Pequenas Coisas como Estas

Crítica – Pequenas Coisas como Estas
  • Publicado em: março 1, 2025

Entre o século 18 até meados do século 20, existiam locais com o nome de Asilo de Madalenas, onde mulheres consideradas desvirtuadas eram literalmente presas nesses locais que tinham como missão, como a Maria Madalena que dava nome a essas instituições, redimir e servir como regeneração a essas moças. Leia-se “desvirtuadas,’ mulheres deficientes, tanto mental quanto fisicamente, mães solteiras, promíscuas para os olhos da sociedade, prostitutas, vítimas de estupros em âmbitos familiares e até mesmo quem a família julgava questionar demais ou ser diferente do padrão machista da época. Na Irlanda, os locais eram chamados de lavanderias de Madalena, e em séculos temos como estimativa que mais de 30 mil mulheres passaram por lá. Tormento que só acabou em 1996. Era trabalho escravo regado a machismo com conivência da igreja católica e estado.

 Claire Keegan escreveu um livro que virou best seller, Small Thing Like These, em 2022, tendo como pano de fundo esse sombrio cenário. Dois anos depois, Tim Mielants colocou nas telonas sua adaptação do livro com o título Pequenas Coisas como Estas (Small Thing Like These, 2024), que finalmente estreia no Brasil nesta quinta-feira.

O filme conta a vida de Bill Furlong no ano de 1985. Pai de família exemplar, tem cinco filhas, morador da cidade de New Ross na Irlanda, trabalha vendendo carvão e madeira. Um dia, Bill, um cara observador e com traumas do passado de ter sido criado por uma mãe solteira renegada pela família, vai entregar lenha para um convento e acaba ouvindo uma moça grávida em prantos presa num gélido galpão. Com nome de Sarah, ela pede socorro e Bill a leva até a irmã Mary, que apenas diz que ela foi trancada numa cruel brincadeira por outras meninas. Como não bastasse, a irmã ameaça Bill, se contasse do episódio, a vida de suas filhas seria um inferno nas escolas controladas pelas freiras. A partir dali várias pessoas da cidade começam a aconselhar Bill a calar a boca, seguir a vida e esquecer de tudo, deixando uma angústia tremenda no coração dele.

Chega ao Brasil o novo filme do oscarizado Cillian Murphy. Com pompa de produção de Matt Damon e Ben Affleck, o diretor Tim Mielants, com um roteiro de Enda Walsh, adaptando o festejado livro de Claire Keegan, tem como mérito tocar num assunto tão espinhoso como o drama das mulheres escravizadas através da observação de um pacato cidadão. Bill era um cara trabalhador, provedor da família e tendo cinco filhas, um sujeito exemplar. Essa mexida na quadrada realidade, ao se deparar com um drama escondido nos porões da sociedade, as lavanderias de Madalena, faz Bill remoer as reminiscências de seu passado com sua mãe, também vítima da violência de uma sociedade hipócrita e o encontro com Sarah o faz abrir caminho para a sua auto-reflexão. 

Pequenas Coisas não deixa de ser um filme natalino, em que através desse novo fato, Bill analisa aspectos morais, o quanto injustiças estão aí sem nada fazermos contra elas, o valor da caridade e como uma pessoa que foi criada por mulheres, e tem no seu seio familiar apenas elas, tem o dever de agir, sabendo como uma sociedade contaminada por dogmas e machismo poderia evitar que com suas filhas algo ocorresse. Um olhar masculino sobre o quanto nascer mulher e não andar conforme as regras pré-estabelecidas a punição pode vir de quem menos desconfiamos.

Cillian Murphy está ótimo como sempre, taciturno, sério e calado, conduz a trama com seus olhos, numa observação profunda do ambiente. Conseguimos, apenas com sua fisionomia, sentir seu drama interior, que não sabe se deve ou não agir perante uma injustiça e crueldade tamanha. Por pouco mais de 90 minutos, com poucas palavras, o ator nos faz penetrar na pele de Bill Furlong, seus dramas do passado e a necessidade angustiante de resolver seu presente.

O ponto negativo do filme é a pouca profundidade de explorar mais em nível macro as tais lavanderias de Madalena. A trama se concentra mais em um episódio individual, com Sarah grávida, sofrendo nas mãos de uma freira e a missão de Bill é apenas salvá-la. A falta de questionamentos sobre o porquê dessas instituições, ou quem realmente comandava esses locais e como ajudar as outras moças que sofriam nas mãos das religiosas, se não tivesse no final do filme uma mensagem sobre esses perversos locais, para a grande maioria, jamais saberíamos que o filme era sobre eles. Ou nas vezes que parece que o mais importante para a história era Bill ter a sua redenção pessoal e a descoberta daquela crueldade servia mais para a consciência dele do que para a libertação da menina. 

Mesmo com esses deslizes, Pequenas Coisas como Essas é um  filme melancólico e reflexivo que nos questiona o quanto às vezes apenas testemunhar uma agrura e não fazermos nada para saná-la pode ser tão nocivo quanto a atitude de quem a comete, ou apenas lavarmos as mãos (como o personagem faz o filme todo) não nos limpa da indiferenca. E que às vezes um novo fato na vida pode ser um mote para nos tornarmos melhores e mesmo não podendo abraçar o mundo todo, abraçarmos uma pessoa pode fazer uma grande diferença.

Written By
Lauro Roth