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CRÍTICAS

Crítica – Pecadores

Crítica – Pecadores
  • Publishedabril 17, 2025

Uma das lendas mais clássicas da história da música foi que o bluesman Robert Johnson vendeu sua alma para o diabo em troca de sucesso. Reza a tal lenda que no final dos anos 1920, o músico, munido de um violão e uma garrafa de whisky, foi a uma encruzilhada do Mississipi e pediu para ser o melhor músico  do estilo. Para selar o pacto, ele e o coisa ruim dividiram uma garrafa de whisky juntos. Uns dizem que seus sucessos posteriores foram obra dessa sinistra união, mas como com o capeta nada se confia, Robert Johnson morreu aos 27 anos, deixando como legado a inspiração para diversos guitarristas nas décadas vindouras, inclusive Eric Clapton, que até um disco com composições dele gravou. O diretor Ryan Coogler, em um dos filmes mais esperados desse ano, utiliza esse folclore do blues como sendo uma música profana, misturando crítica social, racismo e vampiros sedentos por sangue no filme Pecadores (Sinners, 2025), que tem estreia marcada para essa quinta-feira.

Os gêmeos Fumaça e Fuligem, depois de uma temporada trabalhando com gangsters como Al Capone em Chicago, voltam para sua terra nos rincões do Mississippi. Com uma boa bagatela de grana, os dois deram golpes tanto na máfia irlandesa quanto na italiana. Com o dinheiro, pretendem criar um bar noturno só para os pretos, com muita música, dança, bebida e livre dos preconceituosos brancos. Feito à toque da caixa, já que queriam inaugurar naquela noite mesmo, os dois levam seu sobrinho, o talentoso Sammie Moore para tocar, juntamente com um blueseiro veterano, Delta Slim. Com tudo pronto, a noite é regada à diversão, bebida e liberdade, mas a paz é interrompida quando um trio de brancos pede para entrar no recinto e são proibidos por eles. Só que os brancos são vampiros e ficam na espreita esperando uma brecha para massacrar os frequentadores do bar dos irmãos. Enquanto isso, os frequentadores tem que bolar uma estratégia para sair com vida do local e evitar se tornarem sanguinários vampiros.

Tirando exageros eufóricos de alguns entusiatas, que o filme já é um dos mais perfeitos do ano, Pecadores, de Ryan Coogler, nos entrega um divertido filme, recheado de crítica social, chagas do racismo sulista dos tempos passados, misturando tudo a uma eficiente historia de vampiros, além de explorar a lenda que o blues é uma música profana que pode provocar tanto os sentimentos mais vulgares dos ouvintes quanto demônios de verdade. Claro, uma metáfora para mexer com o conservadorismo da época que tratava a música negra como uma sucursal do inferno. Muito mais que um filme de terror ou de vampiros, Pecadores é um filme antissistema, um libelo por liberdade e paz de um povo que se ainda sofre hoje em dia e em 1932 não era considerado gente pelo status quo racista. Como o personagem Fumaça fala, ao ser questionado pelo sobrinho Sammie, se em Chicago as coisas são mais leves pros pretos e ele responde: a diferença é que em Chicago temos grandes prédios e no Mississipi temos lavouras, em ambos somos mal tratados. 

Os gêmeos gangsters e veteranos da Primeira Guerra, mesmo com todo o poder do dinheiro, elegância e status de terem vindo da cidade grande, são vistos com maus olhos – desde o senhor branco que vende o galpão para os irmãos; os racistas adeptos à dita extinta Ku Klux Klan; os nativos da região que não respeitam nem seu caminhão, tentando roubar as mercadorias na cidade e a igreja, representada pelo seu tio, um pastor conservador, conformista, que condena o filho e sua música ímpia. E falando em música, a trilha sonora de Ludwig Göransson é de uma beleza inebriante, indo de uma crescente purista, com violões e sons dos anos 1920, apresenta mudanças no decorrer da trama, chegando no clímax com modernas guitarras cortantes, trazendo satisfação ao ouvidos e pontuando o ritmo do filme. 

E como Pecadores foi vendido como um filme de terror, vamos para os vampiros. Em uma mistura de Um Drink no Inferno, com ares de A Noite dos Mortos Vivos, a sequência do bar sendo cercado por vampiros idealistas com uma filosofia hippie, 30 anos antes do surgimento do movimento, é repleta de ação, sustos e diverte muito. Fora o trabalho de não mexer com as sagradas regras do vampirismo. Eles tem asco a alhos, só entram num local se convidados, queimam a luz do dia e só são exterminados com pontiagudas estacas. Mais um ponto positivo do filme é preservar a tradição dos seres da noite, já que em algumas produções recentes ela foi tão escanteada.

Michael B. Jordan volta à parceria com Ryan Coogler, dessa vez em dose dupla. O ator faz os gêmeos Fumaça e Fuligem e por alguns momentos não sabemos quem é um ou outro. Mas fora isso, o ator manda muito bem, com muita elegância e charme, quando preciso senta a mão e não é econômico ao apertar o gatilho nas cenas de ação do filme, principalmente da metade para o fim. Uma bela atuação de quem está muito confortável, mesmo trabalhando dobrado. O estreante Miles Caton, músico que faz Sammie Moore, também está ótimo em seu debut nas telonas. Ele e Sammie, prodígio do blues, que enfrenta a fúria do pai e desperta com sua música os diversos sentimentos de uma sociedade oprimida.  Hailee Steinfeld também brilha como o caso de um dos gêmeos, e se torna uma das primeiras e violentas vampiras. Jack O’Connell interpreta Remmick, o líder dos vampiros do bem. Sim, esse deve ter sido um dos poucos problemas do filme.

Essa ideia de vampiros que almejam uma sociedade comunitária, onde todos podem viver em alegria cantando cantigas é um tanto quanto caricata, e mesmo nas passagens do “terrir”, como na sequência  dos ataques de vampiros à boate, às vezes descamba demais para o pastelão e o absurdo, caindo um pouco a qualidade do filme. Mas Pecadores, com certeza, em um ano tão irregular de produções, brilha como um dos melhores filmes do ano sim. Com uma direção de Coogler voltando ao cinema autoral, nos apresenta uma quadro de uma América não tão distante, em que a opressão e o racismo imperavam, os fanáticos religiosos amansavam o povo com sermões de medo, tirando a autoconfiança dos pretos. Um sul racista que não tinha vergonha de seus preconceitos e absurdos segregacionistas. Mas também mostra que através da música, da união e do direito de se reunir e ser feliz, como naquela incrível noite no juke joint (nome dado a casas do tipo na época) dos irmãos Fuligem e Fumaça, um povo se permitiu sorrir, cantando, dançando e louvando a liberdade ao som da hipnótica música de Sammie e ao menos por algumas horas se viram contentes e embriagados ao ponto de ser um elo entre o real e o sobrenatural. Uma prova que a música confronta, questiona, provoca medo e era a grande arma para salvação de um povo oprimido, que via no blues a principal maneira de extravasar, colocando para fora todas suas tensões, emoções e sentimento, lavando a alma contra os fantasmas reais e sobrenaturais (no caso, vampiros) à beira do velho Rio Mississippi…

Written By
Lauro Roth