Crítica: Os 7 de Chicago

O escritor Norman Mailer foi testemunha ocular dos acontecimentos que mexeram os Estados Unidos em agosto de 1968. O que era para ser mais uma convenção do partido democrata na cidade de Chicago acabou virando uma batalha campal de uma população protestando contra os absurdos da guerra e o status quo contra uma polícia truculenta e mal preparada de uma cidade comandada por um prefeito conservador e autoritário. Norman presenciou tudo e ainda depôs a favor dos sete cidadãos americanos, que num processo inédito foram acusados de incitar a violência. No famoso julgamento que durou cinco meses o escritor definiu bem aquele circo midiático: ‘’uma queda de braço passada ao vivo na TV entre a velha ordem e a ascendente contracultura.

O caso dos sete de Chicago que eram oito sempre foi um dos capítulos mais marcantes da história recente, gerando livros, documentários, teses e era um sonho antigo de Steven Spielberg fazer um filme sobre o assunto. Queria realizar uma viagem ao tempo e mexer com as feridas de uma América do passado e já tinha a pretensão de usar Sacha Baron Cohen como o anárquico Abbie Hoffman. O tempo passou e o pai do ET abandonou o projeto e quem tocou o barco foi o próprio roteirista Aaron Sorkin, que resolveu ele mesmo dirigir o seu roteiro. A pandemia abortou os planos de passar nas telonas, mas em parceria com a Netflix, o filme foi finalmente lançado nesse mês de outubro. Falo de Os Sete de Chicago (The Trial of the Chicago 7, 2020).

A trama, após uma breve explicação do calor dos acontecimentos daquele agosto de 1968 nos Estados Unidos, vai direto ao famoso julgamento dos sete de Chicago. Oito na verdade, pois Robert Seale, livre dos Panteras Negras, foi acusado junto com os sete mesmo sem participar dos confrontos, e sim apenas por estar em Chicago por quatro horas naquele dia. O julgamento literalmente parou a América sendo televisionado com ampla cobertura midiática. O filme, através de depoimentos no tribunal e flashbacks dos fatos ocorridos mostra a dicotomia de uma América jovem, utópica, às vezes desorganizada, mas cansada daquela realidade e uma guerra sem sentido contra um sistema de justiça acusador, arcaico e violento.

Os Sete de Chicago com certeza pode ser considerado um dos filmes mais interessantes desse ano engessado pela pandemia. Obviamente que o assunto é deleite para qualquer cineasta e roteirista, uma história tão marcante como essa, e Aaron Sorkin consegue com seu roteiro ágil e uma edição preciosa transformar as mais de duas horas de um filme de julgamento que poderia ser maçante, até pelo tema, que é pouco conhecido fora dos Estados Unidos, num filme moderno, mas não tão ousado, que segue um padrão clássico para o subgênero filmes de tribunal, recheado de bons diálogos, marca pessoal do realizador. Com uma reconstituição perfeita de época o diretor tem o mérito de nos transpor para 1968, porém nas entrelinhas nos mostra que muitas coisas até hoje ainda fazem parte da realidade da sociedade marcada por racismo, abuso e violência policial, um sistema autoritário, conservador e, por que não, causas impossíveis e utópicas com pouca autocrítica e delírios juvenis. Chega a ser covardia quem está melhor que quem nas atuações.

Sacha Baron Cohen como Abbie Hoffman, fundador do partido do Yppies, está excelente como o representante da contracultura que fazia da anarquia e a revolução cultural seu mote. Já como contraponto, Eddie Redmayne como Tom Hayden faz muito bem o político bom moço, mas com novas ideias, com a cara da nova esquerda (e futuro esposo de Jane Fonda…), que acha que apenas as urnas podem realmente mudar o mundo. Aliás, um dos grandes momentos do filme é o embate dele e Abbie Hoffman, cada qual defendendo suas ideias e seu modo de agir e mesmo lado a lado no banco dos réus não conseguem chegar num acordo, mais ou menos como acontece até hoje na política. Yahya Abdul-Mateen II, impressiona como Bobby Seale, o controverso líder do partido dos Panteras Negras sempre batendo de frente e sendo reprendido de forma racista e truculenta pelo juiz Hoffman. A cena em que ele é amordaçado e algemado em pleno tribunal é extremamente chocante e também não tem como não associar ao momento atual que vivemos de abusos de autoridade e racismo. Frank Langella como o juiz Julius Hoffman também está soberbo como o velho juiz autoritário que representa o velho sistema que não sabe ou não quer lidar com o novo. Mark Rylance também está ótimo na pele do advogado do grupo William Kunstler. Enfim, poderia citar até mais, mas o filme realmente tem grandes e seguras atuações. Uma das características do Aaron sempre foi a cansativa verborragia dos seus roteiros, nesse ela surpreendentemente está mais contida.

Como ponto negativo da obra cito o excesso de frases pouco naturais, parece que todo momento um dos acusados, o juiz, os acusadores ou os defensores sempre têm uma frase pronta de impacto na mão. Fica bonita na teatralidade da trama, mas passa pouca verossimilhança aos fatos, mesmo com as atuações muito boas parece que alguns diálogos ou discursos são uma representação forçada. Também Aaron puxou e passou pano demais para um lado. Claro que a polícia de Chicago, o prefeito Richard Daley e o sistema norte-americano representavam tudo o que tinha de mais ultrapassado na época, mas os dois lados tinham problemas e os protestos foram apresentados como apenas um lado tendo culpa, enfim um episódio tão complexo e marcante podia ter menos certezas e mais questionamentos. Sem falar que no final do filme, que enfim, tirem vocês suas próprias conclusões.

Mas em um Saara de filmes com lançamentos cancelados, uma seca de cinema e uma enxurrada de filmes pavorosos nos streamings da vida, Os 7 de Chicago surge como uma película com muitos acertos e vem numa época certa para essa era de incertezas que vivemos, um belo exercício para as novas gerações conhecerem que as lutas vem de muito tempo. Concluindo com mais uma frase do genial Mailer sobre o julgamento: ‘’eles entenderam que não era mais necessário atacar as fortalezas do poder. Tudo o que eles fizeram foi fazer caretas para as pessoas que estão lá dentro, os poderosos, e que os deixaram ter sozinhos, seus ataques nervosos, que os destruíram por conta própria’’. Enfim, às vezes a ironia, o sonho, o desestabilizar o poder no seu calcanhar de Aquiles é mais poderoso que a violência e os mantras autoritários da velha esquerda, isso os sete ou oito mostraram para o mundo.

Diretor/Escritor: Vencedor do Oscar e do Emmy Aaron Sorkin
Elenco: Yahya Abdul-Mateen II, Sacha Baron Cohen, Joseph Gordon-Levitt, Michael Keaton, Frank Langella, John Carroll Lynch, Eddie Redmayne, Mark Rylance, Alex Sharp, Jeremy Strong, Noah Robbins, Danny Flaherty, Ben Shenkman,  Kelvin Harrison Jr., Caitlin Fitzgerald, Alice Kremelberg, John Doman, J.C. MacKenzie, Damien Young, Wayne Duvall, C.J. Wilson
Produzido por: Marc Platt, Stuart Besser, Matt Jackson and Tyler Thompson

Sinopse: Em 1968, uma manifestação pacífica durante a Convenção Nacional Democrata se transformou em um violento confronto com a polícia e a Guarda Nacional dos EUA. Os organizadores da manifestação (entre eles Abbie Hoffman, Jerry Rubin, Tom Hayden e Bobby Seale) foram acusados de conspiração e incitação à desordem. O julgamento do caso se tornou um dos mais famosos da história.

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