Close
CRÍTICAS

Crítica: O Quarto ao Lado

Crítica: O Quarto ao Lado
  • Publishedoutubro 21, 2024

Um dos temas mais complexos, principalmente na vida, e que a arte sempre está disposta a nos fazer refletir é sobre a finitude do ser humano. O quanto a vida, ou melhor, o final dela, além de ser inevitável, abala também quem fica. E um desses temas mais espinhosos é o direito de escolher como morrer para abreviar o sofrimento. Muitas pessoas em estado terminal, ou apenas sabendo que a vida é apenas mais um fardo num casco com os dias contados, gostariam de ter esse direito, mas por valores morais, familiares e religiosos, continua um tabu quase intocável na sociedade. Mas a pergunta fica: quem somos nós para definir e mensurar o sofrimento de alguém, que com uma doença com os dias contados quer simplesmente dar adeus? 

Não falo claro do suicidio, que além de um problema tratável é algo ainda muito mais delicado. Mas temas espinhosos, que mexem com a sociedade, nossa existência e a vida são prato cheio para Pedro Almodóvar desde sempre. E com O Quarto ao Lado (The Room Next Door, 2024), seu primeiro longa em língua inglesa, vencedor do Leão de Ouro em Veneza, sua sensibilidade aguçada, seu humor no ponto certo e sua facilidade de atar os laços humanos estão presentes, nessa aguardada obra que estreia nos cinemas brasileiros.

Ingrid é uma escritora e intelectual de sucesso, com mais de uma obra vendendo a rodo. Vive feliz em Nova York até descobrir que uma antiga amiga, Martha, uma ex-correspondente de guerra, que tem um relacionamento rompido com sua filha, está com um câncer complexo. Ao visitá-la, a amizade aflora novamente. Martha descobre que seu câncer piorou e qualquer tratamento que fará será paliativo. Então decide tomar uma decisão radical, mas conta com sua amiga Ingrid. Em uma casa alugada em Woodstock, à beira de um lago, pretende passar seus últimos dias acompanhada da amiga, num quarto ao lado, onde pretende a qualquer momento tomar a radical decisão de sua vida, ou melhor, dar um ponto final nela.

Almodóvar é daqueles diretores que pode fazer qualquer coisa, que é sempre válido assistir… Leia-se, um menor Almodóvar é melhor que muita coisa lançada semanalmente por aí. E mais uma vez Pedro nos entrega um dos seus filmes mais sensíveis e humanos de sua carreira. Além de ser um filme direto, evitando aquelas reviravoltas abusadas e encantadoras de suas melhores obras. O Quarto ao Lado é um filme direto, temos duas mulheres, grandes amigas, uma belíssima casa de campo e um dilema crucial. Uma vida em jogo e o que realmente importa: quando o fim dela está chegando.

O toque do espanhol está em todos os detalhes do filme, seus enquadramentos perfeitos, as cores que começam em tons sóbrios e depois vão descambando para as vivíssimas cores. Mas o principal é como Almodóvar consegue traçar tão bem os laços humanos, consegue fazer com que duas mulheres tão opostas, uma cheia de vida e com medo da morte possa servir de escudeira para uma mulher calejada pela vida, com traumas de uma profissão onde a morte é banal, e uma ruptura quase definitiva com a filha que abandonou por sua profissão, mas pela sua racionalidade não suporta a condição do sofrimento e não admite ter que enfrentar mais essa jornada de maneira natural. O filme tem um quê de Fale Com Ela na cena das poltronas da varanda, mas sinto uma inspiração de Ingmar Bergman. As relações entre duas mulheres, dividindo o drama, as gargalhadas, o silêncio e a eterna espera pelo que pode acontecer, mas tudo de uma maneira serena, adulta e extremamente humana e intimista, apesar da frieza em alguns momentos.

O filme é das duas. Tilda Swinton surpreende nos entregando uma performance física, vai definhando com a doença, mas nunca perde a calma e é fiel às decisões. Com uma vida de muitos calos, sabe o que quer, nunca perdendo o humor e a confiança nela mesma. Julianne Moore é mais humanista, tem seus medos, receios, mas se entrega de corpo e alma para o último desejo da amiga, numa atuação (mais uma) arrebatadora. Temos ainda um John Turturro, antigo amante de Marta que é a síntese de uma sociedade pessimista, tem medo do amanhã, do futuro e acha que o ser humano está extinto. Tudo de uma maneira realista e exageradamente calculada. Mas o filme é Moore e Swinton, Ingrid e Martha, numa química perfeita.  Para não falar que não temos tropeços, um dos problemas do filme é o ritmo irregular, às vezes sonolento, que faz perder um pouco interesse, a uma história perdida numa flashback de guerra que também achei desnecessário, além é claro, que por mais que as duas atrizes façam o melhor, senti falta do tempero latino e as frases em língua espanholas que tanto nos encantam. Em suma, um Almodóvar em inglês perde a dramaticidade caliente de um tema tão pesado. Se O Quarto ao Lado não é uma obra prima de Almodóvar é mais um grande filme, sensível, corajoso e emocionante, em que exploramos nossas fraquezas, as peças que a vida nos traz, a maneira como enfrentamos os problemas e principalmente, a força da amizade, aquela que não julga, mas compreende e pode ser crucial nos momentos mais difíceis da vida, ou no final dela. Um Colors de Almodóvar ainda funciona, mas as colores, na língua de Cervantes, empolgam mais, pela visceralidade e coração, do que os diálogos na língua de Shakespeare.

Written By
Lauro Roth