Crítica: Moonage Daydream

Costumo dizer que na história das artes temos diversos grandes músicos, atores, cineastas, pintores, escultores, escritores, estamos muito bem servidos de geniais seres humanos, que na sua especialidade, ou em mais de uma, fazem o mundo que vivemos ser muito melhor. Mas artista, aquele que no conceito que eu defino da palavra, tivemos alguns, e talvez o maior dos artistas que já pisou nessa Terra (provavelmente, ele nunca foi daqui mesmo) foi David Bowie. Ele tinha como inspiração de vida o seu ar (fora o cigarro, porque ninguém é perfeito), sua missão pessoal de transgredir através da música, comportamento, estilo, dança, visual, pinturas, atuações, enfim, a lista é longa do que ele fazia de tão bem e sempre, como característica, jamais se colocar numa zona de confronto, a segurança fazia mal para ele e o desafio era sua meta diária. David amava o cinema e, enfim, agora em setembro um documentário à altura sobre sua incrível e mutante vida estreia nos cinemas, e infelizmente, ficará pouco tempo em cartaz, então corra e assista a essa imersão catártica que Brett Morgen, como diretor, produtor, roteirista e editor fez da vida do garoto do espaço, intitulado Moonage Daydream (idem, 2022).

O filme conta a vida de David Bowie. Simples assim, essa é a premissa, mas quem espera um documentário temporal, quadradinho, com depoimentos, passagens banais da vida dele e uma tentativa de explicar o inexplicável que é o artista, nem se arrisque ao ir ao cinema. Brett simplesmente, através de um acervo advindo do espólio de imagens e gravações do próprio David, nos convida para uma visceral viagem visual, um caleidoscópio frenético, mostrando um pouco a carreira dele, enxertando imagens, obras de arte, pinturas, cenas de filmes, passagens de show, resgatando entrevistas e o principal: uma narração do próprio Bowie, que divaga sobre a vida e pontua as passagens do filme, e tenta explicar o quanto ele vivia para a arte e para se superar. Às vezes até parece um coach moderno, com frases inspiradoras, que na voz de outro qualquer poderia parecer piegas, mas vindo do gênio e do que ele realmente viveu, passa uma sinceridade e motivação ímpar.

O trabalho de edição é surpreendente. A sensação de assistir esse documentário numa sala Imax é uma das maiores experiências visuais e sonoras que tive em minha vida, mas claro que, sendo fã desde a fase mod de David Bowie, fica muito fácil entrar no transe de cores, cortes, sobreposições e fragmentos, que às vezes parecem mosaicos tentando não explicar o artista, e sim tentar ilustrar, numa quase onírica experiência o quanto ele foi importante, reverenciar. Logicamente, a parte musical é de um prazer incrível para os ouvidos, está ali a fase Ziggy, a fase americana, onde começou a atuar também, a era Bowie Eno em Berlim, as fugas dele, a busca pelo novo, a fase super popstar nos anos 1980, com discos populares, tours gigantescas, comerciais, cinema (onde para uns teria se vendido), mas como ele mesmo explica, se vendeu sim e daí? Aliás, a impressão e o que podemos aprender com Bowie é exatamente isso: e daí? Quantas vezes deixamos de fazer as cosias por causa dos outros sendo que bastava um “e daí, por que não posso mudar e ser feliz?”.

O acerto maior de Brett é realmente não tentar se aprofundar e buscar o elo perdido do camaleão britânico, e sim, prestar uma homenagem ao artista, com um filme, que se Bowie estivesse vivo, acredito que aprovaria. Claro que alguns dirão que faltaram algumas fases, poderia ter mostrado o lado pesado do vício de Bowie, e eu, particularmente, acho que poderia ter ao menos uma citação ou imagem do lendário produtor Nile Rodgers, que ajudou a criar o David Bowie dos anos 1980, colocando o mundo para dançar como ele fez com sua banda disco Chic. Pode-se argumentar que o documentário é só do Bowie, mas a figura de Brian Eno é citada, então por que não Nile? Enfim, nem essa falha de um fã do produtor serve como decepção na obra de arte que Brett nos apresenta. E bate também uma inveja, da facilidade de um inglês, ou norte-americano fazer um documentário de uma celebridade, as infindáveis imagens, arquivos, fotos, transformam a vida de um documentarista em uma barbada, em comparação ao Brasil onde as imagens são perdidas, surradas, não disponibilizadas.

E o prazer imenso de ouvir as dezenas de canções de Bowie inclusas no filme, mostrando passagens de show históricos, das suas diversas fases, é uma alegria para os ouvidos e um prazer imenso para qualquer fã e, diria mais, nem tão fã, já que por menos didático que o filme possa ser, só com sua imagem e canções, fica difícil alguém não sair impressionado com o colosso chamado David Bowie.

Moonage Daydream (título de uma canção do antológico disco de 1972 , The Rise and Fall of Ziggy Stardust) nos convida para uma imersão na vida de um artista, um cara que estava sempre à frente, pensava coisas no início dos anos 1970 que hoje ainda fazem sentido, um cara que nunca se conformou, sempre trazia novidades, sabia atuar como poucos, vivia o personagem que ele mesmo criou, um filme que reverencia com louvor um ser especial (ou seria espacial?, mas pelas declarações mais humano impossível), de uma maneira hipnótica, visceral, artística e gigante como foi a carreira de David Bowie. Para ver, rever, admirar e se apaixonar cada vez mais pela imensidão artística de um cara que respirou as artes em todas as suas formas até o fim de sua vida.

 

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