Crítica – Maria Callas
Às vezes uma pessoa pode ser definida apenas por uma simples mania, ou como chamamos cientificamente, um TOC. Desde usar a mesma roupa para dar sorte, evitar comer alguma coisa por dar azar, entrar sempre pela mesma entrada de um local, enfim a lista de manias ou muletas de sorte da complexidade do ser humano são infinitas, mas algumas são pesadas e um tanto pitorescas. No filme Maria Callas, o piano da divina soprano provocava grandes problemas nas costas de seu mordomo e escudeiro Ferruccio, já que a cantora a cada dia resolvia mudá-lo de posição, conforme seu irrequieto humor. E o chileno Pablo Larraín, através de um recorte final da vida daquela que foi considerada a melhor soprano do século 20, tem seu filme como grande estreia na semana nos cinemas brasileiros, Maria Callas (Maria, 2024 ).
Acompanhamos de uma maneira metalinguística os últimos passos de Maria Callas. Morando em Paris em 1977, vemos uma reclusa cantora, fragilizada pela vida, sentindo o cansaço na voz e tendo como companheiro fieis seu mordomo Ferruccio e a governanta Bruna, que é uma das poucas que ainda dizem que sua voz é divina. Maria vive entupida de remédios de todos os tipos, tem uma saúde balançada e uma mente em polvorosa, chegando a acreditar que um jovem diretor chamado Mandrax (nome de seu remédio para dormir), fruto de sua cabeça alucinada, quer fazer um documentário sobre a vida agitada da cantora. Com isso, vemos em flashbacks, momentos inesquecíveis de sua brilhante carreira e sua relação de conto de fadas com o milionário Aristotle Onassis.
O diretor Pablo Larraín fecha sua trilogia de mulheres fortes, de vidas marcantes e sofridas. Começando com Jackie (2016) sobre Jackeline Kennedy, Spencer (2021), um filme agoniante sobre a vida de Lady Di e fecha com a não menos importante, mas talvez menos conhecida, a greco-estadunidense Maria Callas. Contando novamente com Steven Knight, que foi roteirista de Spencer, o diretor chileno procura criar um recorte do canto dos cisnes da vida da soprano. Seus últimos dias de vida, no outono de 1977, em Paris. Lorrain pinta um quadro de uma mulher outrora poderosa, mas hoje frágil, carente e temerosa com a perda de qualidade de seu maior patrimônio: sua voz. Callas é introspectiva, se fecha no seu apartamento na cidade luz, cisma com a posição do piano, todo dia sendo recolocado em outro canto da casa pelo cansado mordomo. Aos 54 anos tem apenas como companheiros suas drogas para acordar, abrir o apetite, comer e mudar seu combalido humor. Suas companhias são os dois empregados que são os únicos nessa sua fase da vida que aguentam e entendem as agruras do peso de ser Maria Callas.
O filme também abusa de metalinguagem, quando tem a figura imaginária de Mandrax, um jovem cineasta disposto a retratar sua vida, momentos de devaneios em que Callas, dentro da sua classe e elegância, abre seu coração para sua vida. Vida pregressa com seus momentos de glória nos palcos pelo mundo, usando o preto e branco, além de sua agitada vida social, conhecendo grandes políticos como John Kennedy e o seu grande amor, o milionário armador greco-argentino Onassis. A fotografia do genial Edward Lachman, é como sempre, aquele show à parte, com tomadas grandiosas dos espetáculos operísticos, faz do apartamento um personagem, transforma e usa como poucos o já citado preto e branco nas tomadas de flashback da vida de Callas. E sem falar nos figurinos e direção de arte, extremamente elegantes, à altura da época e da personagem.
Mas talvez os dois maiores problemas do filme sejam, em primeiro lugar, o ritmo lento da película. Em vários momentos somos levados pelo tédio existencial da cantora, num marasmo sem fim, parecendo que ela passava o dia todo usando frases bonitas e perspicazes para ilustrar o fracasso do fim de sua vida, além de algumas passagens desnecessárias e cansativas de uma eterna introspecção, que mais causa aborrecimento que uma saudável reflexão. E outra coisa que é um grande problema é a sincronia labial da Angelina Jolie dublando a voz da cantora. Em alguns momentos, por mais que Jolie realmente tenha cantado e estudado a postura dos movimentos da boca da cantora, a falta de tautocronia provoca alguns momentos irritantes, ainda mais em meio à tanta beleza visual das tomadas dos números musicais da cantora e sua voz esplendorosa.
Falando de Angelina Jolie, ela com certeza está num de seus melhores papeis da carreira. Mesmo com a falta de semelhança real entre ela e Callas, Jolie nos apresenta a sua caraterização muito pessoal da soprano. Consegue se transpor da elegância e finesse da soprano para momentos de pura fragilidade em segundos. Uma soberba atuação introspectiva e com extrema sensibilidade, mas jamais deixando a aura de Callas e seu poder de ser a maior cantora do mundo cair do palco. Atuação digna de indicação para Oscar 2025.
Maria Callas é uma corrreta homenagem a uma das maiores artistas do século passado. Acerta em se apoiar na dança final da sua vida, nos apresentando uma mistura de elegância e melancolia à conturbada personalidade de Callas, uma Diva dos palcos, com D maiúsculo mesmo, e que mesmo na sua alegoria delirante, jamais deixa de nos tocar o coração. Peca por detalhes técnicos e um ritmo modorrento, ainda mais porque Callas, por mais incrível que tenha sido, não é uma personagem tão popular. Mas Larraín nos apresenta de forma honesta o retrato, como já tinha traçado antes, de Jackie Kennedy e Diana Spencer, de mulheres poderosas e fascinantes, que são gente como a gente, com medos, fantasmas do passado e manias, por mais que nossa adoração por elas não nos deixe acreditar.