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CRÍTICAS

Crítica – Manas

Crítica – Manas
  • Publishedmaio 14, 2025

O Brasil não conhece o Brasil… Abro esse texto com esse trecho de Querelas do Brasil, composição de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, que ficou imortalizada na voz de Elis Regina, para ilustrar nosso total desconhecimento do que acontece nos mais distantes pontos desse país. Nesse caso, me transporto à Ilha do Marajó, no estado do Pará. O sofrimento solitário e mudo das mulheres ribeirinhas moradoras dessa região é o tema do premiado filme brasilerio de Marianna Brennand, Manas (2024), que tem estreia nesta semana nos cinemas desse Brasil tóxico e varonil.

Marcielly tem 13 anos. Divide uma palafita de dois cômodos com sua mãe, Danielly, seu pai Marcílio, e mais três irmãos na Ilha do Marajó, no Pará. A menina nunca compreendeu bem os motivos de sua irmã mais velha, Cláudia, ter dado no pé de casa tentando a vida no Sul, e entre descobertas adolescentes, a escola e as amigas, aos poucos ela vai percebendo que aquele ambiente é uma arapuca para qualquer mulher. Mesmo com o “aleluia irmãos” da sempre presente igreja, o futuro das meninas da região ou é se aventurar nas balsas e servir de mercadoria sexual para os caminhoneiros ou sofrer calada os abusos sexuais do pai no seio do lar. Mas Marcielly não quer seguir esse triste destino, tentando driblar o abusador pai e proteger sua pequena irmã, que tem tudo pra seguir esse destino. Tudo isso com a conivência calada da mãe, da sociedade e da própria igreja, que com o silêncio, são testemunhas estáticas do sofrimento e da dor daquelas meninas.

Se em IracemaUma Transa Amazõnica a prostituição infantil na Amazônia era vista apenas como uma consequência do progresso, do milagre econômico e mais como opção que uma denúncia, Marianna, ao ouvir diversas histórias de meninas que na vida real têm sua infância marcada por estupros, incestos e pedofilia, resolveu, ao invés de fazer um documentário, juntar essas histórias e criar uma história de ficção para contar esse drama. 

Tendo o Rio Tajapuru como cenário silencioso, Manas tem esse mérito de contar o drama das ribeirinhas, mas devido à universalidade do tema, poderia ser em Alphaville, numa favela do Rio de Janeiro, no agreste pernambucano ou numa fazenda do interior do Rio Grande do Sul, afinal nessa sociedade machista e abusadora, qualquer menina é potencial presa para os predadores sexuais. No filme, o pai, um homem do bem e da igreja, segundo a mãe, leva Marcielly para caçar paca e aproveita o momento para abusar da menina e acaba que o termo paca vira sinônimo das partes íntimas da menina. Em Manas o abuso é hereditário, a mãe também foi abusada em casa, ganhou como castigo ser expulsa de casa com uma filha pequena e agradece que o marido a acolheu. Mas Marcílio segue a tradição dos machos da região e abusa da filha de Danielly, sob a conivência dela, e segue a Marcielly para ter o mesmo destino.

Todo esse drama é brilhantemente retratado pela fotografia de Pierre de Kerchove, que sabe explorar o bucólico e selvagem cenário da Ilha de Marajó, com closes abertos da imensidão dos rios e matas e com tomadas nos personagens ilustrando o silêncio do absurdo daquele ambiente hostil e sem saída. Em um momento, o tamanho do desespero da menina é tanto que ela prefere vender seu corpo nas balsas, onde caminhoneiros do Brasil todo pagam migalhas por pedofilia a meninas miseráveis que vêem ali um saída para aquele ambiente inóspito. Outra cena marcante do filme é quando o pai de Marcielly corta a corda da rede em que ela dormia, para que ela tenha que dormir com ele na cama. A menina então vai na venda da região, com uniforme escolar, queria comprar um caderno e uma nova corda, mas o dinheiro é curto e ela prefere a corda, um exemplo de que a sobrevivência ali é mais importante que a educação.

A diretora também poupou o público de imagens dos abusos, usando apenas sugestões, como as caçadas e o dividir a cama, mas jamais expõe as atrizes à violência visual, que como ela mesmo diz, se mostrasse seria mais um prato cheio para pedófilos e abusadores salivarem com as cenas.

A menina Jamily Correa dá um show como Marcielly. Desde o início, quando se depara com a menstruação, até o final do filme, em que amadureceu anos em apenas meses, mudando aquele ar juvenil para um ar cascudo de raiva e defesa, tem uma gigante interpretação. Rômulo Braga (que vimos como o autoritário pai de Ney Matogrosso em Homem com H) tem a difícil missão de dar vida a um cidadão acima de qualquer suspeita. Aquele chefe de família provedor, defensor da prole, desenvolto, homem com religião, mas que esconde toda sua pele de lobo abusador e que tem controle total da situação. Dira Paes como a delegada Aretha e a personalização do estado naquele ambiente é a única que tenta dar dignidade, desde confeccionando um documento, mas desconfiando que algo não está bem no lar das manas.

Manas é o retrato do sofrimento silencioso de abusos intoleráveis, onde todo o meio tem culpa, por conivência, medo ou conformismo, mas que, na trama, na figura de Marcielly, a coragem e uma atitude radical são as únicas saídas para salvar a pele e a dignidade. Como falei no início do texto, o nosso desconhecimento do Brasil, nos faz ignorar esses dramas tão corriqueiros, que no caso da Ilha do Marajó virou escândalo nacional. Mas isso acontece em qualquer canto deste país, ainda com um machismo enraizado, onde muitos homens têm as “fêmeas” da família como se fossem propriedades e muitas meninas e mulheres sofrem caladas, literalmente, dormindo com o inimigo.

Written By
Lauro Roth