Crítica: Lady Bird – A Hora de Voar é o ordinário tratado com imenso carinho.

Foi uma feliz coincidência o fato de eu ter assistido a Lady Bird – A Hora de Voar (esse subtítulo…) logo depois de ter concluído a (re)leitura do excelente StorySubstância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro. Com a autoria de Robert McKee – cujo grande conhecimento e experiência lhe garantiu o status de um guru do roteiro em Hollywood, tendo como alunos, inclusive, vários cineastas famosos, além de ter sido personagem em Adaptação (2002, Spike Jonze e Charlie Kaufman) – o livro traz vários princípios essenciais que todo roteirista deveria ter como base para o sucesso de uma boa história. Entre eles, está a definição do “subtexto”, que seria tudo aquilo que está nas entrelinhas de uma história, inclusive nos diálogos. É a verdade por trás dos personagens e como o verdadeiro sentido de uma história não está no discurso direto, e sim na real intenção por trás de cada fala; esta que só pode ser alcançada se há dimensão o bastante para que conheçamos aqueles personagens e sejamos capazes de decifrar seus pensamentos.

Sendo assim, é até melhor substituir “feliz coincidência” por “constatação”, já que o ótimo roteiro escrito por Greta Gerwig (já uma das queridinhas do indie americano) sabe trabalhar com maestria o subtexto que carrega os conflitos de uma história de amadurecimento – ao menos para uma adolescente – atribulada (supostamente baseada na vida da diretora). Na trama, Christine (Saoirse Ronan) é uma jovem de Sacramento que está no último ano do ensino médio e tem o desejo de mudar de cidade para cursar a faculdade em Nova York. Com uma difícil relação com a mãe, Marion (Laurie Metcalf), Christine, ou “Lady Bird”, vive na intensidade dos conflitos adolescentes ao mesmo tempo em que tenta conseguir notas boas e arrumar condições financeiras para deixar sua cidade natal.

Partindo de uma estrutura convencional das jornadas de amadurecimento (o coming of age), Gerwig usa com inteligência o formato simples de sua história para fazer com que todo aquele pequeno universo que gira em torno de Christine soe verdadeiro e honesto. E quando usamos o verbo “girar” é porque ele denota com precisão o que alguém de 17 anos pensa sobre o mundo: que tudo e todos giram ao seu redor. Mas o que faz a sua trajetória ser tão interessante é que a protagonista é parte dos conflitos de seu ambiente ao invés do ambiente narrativamente se moldar todo de acordo com sua necessidade. Por isso o roteiro deixa de lado o maniqueísmo e constrói a convivência de Christine com seus amigos, interesses amorosos e família de maneira complexa e orgânica.

Fica fácil nos colocarmos no lugar de qualquer um desses personagens porque várias de suas dores, alegrias e decepções encontram familiaridade na vida de qualquer um. Isso vale também para a própria protagonista, que, como qualquer uma de sua idade, se julga experiente o bastante enquanto flutua entre sentimentos extremos e a inabilidade de lidar com eles – o que leva novamente ao subtexto: metade do que se fala, assim como na vida, significa o contrário, principalmente nas relações com as pessoas mais próximas. Como tudo na vida de uma pessoa jovem, as hesitações de hoje já viram rapidamente as mágoas de amanhã, e como tudo parece ser efêmero aos 17 anos, já têm outro significado pouco tempo depois. A própria personagem não sabe como lidar com isso e o filme tem substância o suficiente para que em certos momentos o espectador imediatamente reconheça as ironias: em um instante ela diz “quero sair de Sacramento e ir para Nova York onde está toda a cultura”, mas sua redação é apontada por alguém como “você claramente ama Sacramento”; em outro, aponta que sua mãe a odeia para, em seguida, dizer “ela tem um grande coração”.

A maneira como Gerwig conduz seu longa, aliás, reflete com eficiência a dinâmica dos questionamentos e das incertezas da idade. Imprimindo um ritmo quase perfeito à narrativa, o tempo de tela nunca parece ser desperdiçado – e nem ao menos para os personagens secundários. Além disso, o equilíbrio entre o humor e o drama funciona muito bem. Assim como alguém de 17 anos, o riso vem na mesma facilidade que a angústia, e por mais que esses sentimentos pareçam insignificantes, costumam vir de uma vez para depois serem substituídos por outros. Nesse sentido, a montagem tem um papel interessante de utilizar pequenos saltos temporais rápidos para ilustrar a profusão de sentimentos sem deixar que as informações não sejam absorvidas – e destaco alguns momentos onde a narrativa pula para cenas que “invadem” o meio de um diálogo, o que cria uma descontinuidade curiosa que acaba funcionando no contexto da mente confusa e naturalmente contestadora da protagonista.

Mas o desenvolvimento de Christine ficaria isolado se o seu ambiente não correspondesse de igual maneira. Recorrendo novamente ao livro de McKee, outro princípio que vem bastante a calhar é “apaixone-se pelos seus personagens”, que é uma citação direta do autor para os roteiristas e é exatamente o que Gerwig consegue aqui. Tratando com carinho as pessoas que passam pela vida de Christine, o texto consegue o mérito de se afastar dos antagonismos fáceis. Dessa maneira, é interessante notar como tudo que parece um obstáculo aparente, eventualmente acaba ganhando nossa empatia. É admirável, por exemplo, como o fato dela estudar em uma escola católica jamais seja usado como um artifício maniqueísta do tipo “jovem mente aberta” contra “a moral cristã”; do contrário, o aspecto religioso, mesmo tendo alguns de seus valores questionados pela própria personagem, faz parte de sua vida de uma maneira quase inconsciente – e o destaque fica para a sensibilidade como o roteiro trata as figuras dos padres e freiras, transformando-os em figuras tão humanas quanto qualquer um, principalmente Leviatch (Stephen Henderson), que, mesmo aparecendo pouco, tem uma das falas mais tocantes do filme. Da mesma forma, Danny (Lucas Hedges) ganha um contorno compassivo, além de ajudar muito para entendermos a própria Christine; a melhor amiga Julie (Beanie Feldstein), que é uma personagem respeitada por Gerwig o bastante para que não seja apenas um recurso de pena; e até mesmo Kyle (Timothée Chalament, aquele mesmo de Me Chame Pelo Seu Nome) reverberando um tipo peculiar que parece caricato, mas que todo mundo já conheceu um similar algum dia.

Mas de todos conflitos na vida de Christine, o que trata de sua relação com sua mãe é o mais complicado e o que mais transmite a ideia de ressentimento e dificuldade de comunicação entre gerações. Jamais parecendo artificial, o vai e volta de mãe e filha acaba ressoando na maneira como o próprio futuro parece incerto e como a cidade onde se passou a vida toda tem muito mais significado do que elas gostariam (o que representa o lar, de fato?). Por mais que os desentendimentos entre as duas possam parecer fáceis de serem resolvidos em uma conversa franca para quem olha de fora (observe como isso acontece com frequência na vida real), eles são o resultado de um desgaste natural que se potencializa quando duas personalidades fortes exibem a mesma incapacidade de se entenderem mutuamente, e o roteiro é suficientemente bem escrito para não tornar esse embate algo simplista. Há animosidade e rancor, mas também o amor incondicional (no subtexto, veja só), o único que não é fugaz como tudo na vida de um jovem, por isso é o mais difícil de ser externalizado.

Dona de uma trajetória bastante significativa (num contexto de idade que se justifica) em sua simplicidade, “Lady Bird” usa seu codinome como uma maneira de achar estar protestando contra todos e contra uma versão de si mesma cuja imagem culpa os outros por projetar. Em sua imaturidade e “aborrecência” inerente, acha que o mundo é injusto frente às suas aspirações e receios (quem nunca). Mas esse caminho também mostra que por mais que o presente pareça confuso e ruim, há sempre uma parte dele que se recusará a te deixar, para o bem ou para o mal – e, inevitavelmente, Lady Bird pode reivindicar seu nome verdadeiro de volta como reconhecimento que a experiência traz a aceitação.

Acima de ser só “convencional”, Lady Bird – A Hora de Voar é um simples tão bem feito que não vejo tanta diferença assim para o que pensamos ser uma história extraordinária.

Nota:

Trailer

Data de lançamento: 15 de fevereiro de 2018 (1h 34min)

Direção: Greta Gerwig

Elenco: Saoirse Ronan, Laurie Metcalf, Tracy Letts, Lucas Hedges, Beanie Feldstein, Timothée Chalamet, Lois Smith, Stephen Henderson, Odeya Rush

Sinopse: Sacramento, Califórnia, 2002. A estudante Lady Bird (Saoirse Ronan) está no último ano do colégio e não faz ideia do que fazer depois que se formar. A convivência com sua mãe, uma enfermeira, é sufocante. Tudo o que vai acontecendo na vida de Lady Bird só a deixa cada vez mais desnorteada.

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