Crítica: Jorge da Capadócia

“Glorioso São Jorge, em nome de Deus, estenda-me o seu escudo e as suas poderosas armas, defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, e que debaixo das patas de seu fiel ginete meus inimigos fiquem humildes e submissos a vós”. São Jorge da Capadócia, Ogum no candomblé e na umbanda, ou simplesmente, o santo guerreiro. Talvez um dos santos com mais devotos no mundo inteiro, pela sua força e coragem de vencer os obstáculos da vida e fé na luta diária, ganhou um filme brasileiro em locações internacionais. Coube a Alexandre Machafer dirigir e incorporar o santo do dia 23 de abril no filme Jorge da Capadócia (2024) que estreia dia 18 nos cinemas, cinco dias antes do dia de devoção a Jorge.

Jorge era um dos mais corajosos e disciplinados soldados do Império Romano. No ano de 303 D.C., devido a suas vitórias em batalhas, foi condecorado capitão pelo imperador Diocleciano. Mas em um surto de poder e intolerância, o imperador exige que seus soldados combatam qualquer resquício de fé cristã. E Jorge, devoto cristão, se vê entre a cruz e a espada, ou abandona sua fé em prol de ascensão militar ou enfrenta o poder e a intolerância romana para defender sua crença e o direito de o povo seguir o cristianismo.

Estava mais do que na hora de um país tão devoto a um dos santos mais carismáticos, ganhar sua história transposta para as telonas. Cultuado tanto no maravilhoso sincretismo brazuca e de grande devoção na igreja anglicana, o filme de Alexandre Machafer é uma grata surpresa. Com gravações tanto em solo brasileiro, o destaque são as tomadas in loco em território turco, onde na própria Capadócia, a equipe filmou grande parte das externas no longa. Com roteiro de Matheus Souza, o longa tem uma excelente reconstituição histórica, com destaque à primeira batalha do longa, com uma coreografia que não deve nada a produções de fora.

Desde as locações, escolhidas a dedo, com uma direção de arte incrível, com ares de épico bíblico, Jorge da Capadócia mostra que o cinema brasileiro pode fugir do óbvio, e com criatividade e orçamento, pode alçar grandes voos. Logicamente que algumas atuações são forçadas demais, com atores nem tentando rebuscar o sotaque e infelizmente qualquer filme religioso parece lembrar aquelas novelas enfadonhas da Record. Mas graças a “Jorge” Alexandre, que com seu esmero técnico, consegue fugir um pouco dessa linha, com destaque a convencer a maquiagem que o próprio diretor/ator usa nos momentos de provação e tortura que o guerreiro vai sofrendo para provar sua fé. Muitas vezes lembrando o sofrimento de Cristo em A Paixão de Cristo, devido à violência e realismo das imagens, provocando as chagas e marcas na fé inabalável do personagem.

Alexandre Machafer encarna de forma convincente o capitão Jorge, em uma atuação correta e digna da importância do personagem. Roberto Bomtempo nos apresenta um cruel imperador Diocleciano. Ricardo Soares, como o misterioso Otávio, também tem grande destaque e Adriano Garin, como o oficial Jano, também segura bem o papel, além de um elenco de apoio digno, que não deixa a peteca cair, honrando a espada de São Jorge.

Mas o momento mais esperado do filme é a aparição do famoso dragão abatido por Jorge. Representando o mal, o cuspidor ser alado, no melhor estilo Game of Thrones, tem um CGI caprichado, principalmente na sua primeira aparição noturna nos devaneios de Jorge. Convence pouco quando é dominado pelo santo, mas não deixa de ser uma baita experiência o Brasil explorar efeitos especiais, sem medo de críticas, provando que o cinema nacional tem espaço não só para comédias popularescas ou filmes pretensiosos e intelectualóides que ninguém assiste, ou se assiste, dorme no meio da sessão.

Jorge da Capadócia cumpre bem o que se propôs. De forma didática explica quem foi o famoso capitão do exército romano que em nome da fé desafiou o status quo. Aqui também vale destacar que em apenas um momento o filme dá uma certa escorregada para a pregação da fé, sendo que na maioria, é uma história de obstinação, força, rebeldia e principalmente superação, marcas que fizeram a devoção a São Jorge se tornar tão forte. Em suma, em vias de chegar a mais um 23 de abril, o filme é uma grande e caprichada celebração ao querido santo, e para quem é devoto, vestir as roupas e as armas de Jorge para buscar proteção sempre é bem-vindo para enfrentar os dragões que assolam nossas vidas. Enfim, mesmo não devoto, é uma grande experiência assistir e celebrar um cinema brasileiro diverso e com gigante qualidade. 

 

Mais do NoSet