Crítica: Ilha dos Cachorros | Wes Anderson por ele mesmo.

Wes Anderson é o tipo de cineasta cuja imagem parece sempre ultrapassar ligeiramente a objetividade esperada de quem analisa o cinema sob um ponto de vista mais crítico. Seu estilo marcante – quase hermético – contribuiu para que fosse visto como diferente e original a cada novo projeto. O tempo, as boas recepções e o boca a boca nos círculos mais alternativos transformou seu estilo em algo obrigatoriamente passível de ser adorado apenas por ser ele mesmo. Ok, o “apenas” pode soar injusto, como se todas as suas qualidades fossem fruto de uma característica resumida em algo pejorativo como “o diferentão” – afinal, seu modo particular aproveita justamente o que a narrativa cinematográfica tem de bom: contar uma história utilizando o máximo das ferramentas visuais.

No caso aqui, trata-se de alguém que insistiu em seu mundo peculiar de modo que todas as suas obras se passam em um universo longe de ser realista, mas com o mesmo poder de captar o espectador pela identificação. Embora muitas vezes essa característica corra o risco de tornar seu cinema em algo rígido e frio, é justamente quando as histórias ganham melhores personagens e uma trama com um pouco mais de… coração (com a desculpa do termo genérico), é que ele ganha mais peso e autoridade. Assim foi com Moonrise Kingdom (2012) e O Fantástico Sr. Raposo (2009), se repetindo agora com Ilha dos Cachorros (Isle of Dogs, 2018), seu 2º longa-metragem em stop motion.

A trama se passa num futuro próximo, no Japão, onde os cachorros foram todos banidos para uma ilha de depósito de lixo através de um decreto do autoritário prefeito da cidade de Megasaki, Kobayashi (Kunichi Nomura), após apresentarem uma epidemia de gripe e se tornarem um perigo para a população. Partindo numa missão para resgatar seu cão Spots (Liev Schreiber), o garoto Atari (Koyu Rankin) cai de avião na ilha e vê uma realidade onde os animais vivem sob péssimas condições, lutando para sobreviver em ambiente hostil. Contando com a ajuda de um grupo, liderado pelo vira-lata Chief (Bryan Cranston), ele parte na busca pelo amigo canino ao mesmo tempo em que descobre uma imagem bem diferente daquela pintada pelas autoridades.

Já de cara, a identidade do cineasta é inequívoca: mesmo se ignorarmos o fato de ser uma animação, trata-se de um filme de Wes Anderson. Pelo elemento estético mais óbvio até pela maneira como seus personagens se comportam, sua autoralidade é realmente a constância de sua carreira; pelos recursos narrativos que nos distanciam de um formato tradicional e nos inserem em um conto épico, sem deixar de dar a leveza necessária, através do humor pontual, da estrutura propositalmente episódica e do “blasé” presente na forma como tudo se comunica com o público. A impressão é que estamos um épico contado de um ponto de vista despreocupado e que tira as reações de um universo onde a seriedade do drama encontra a capacidade cativante da animação. É o seu microuniverso onde tudo é uma versão mais estilizada da realidade.

Nesse sentido, a técnica do stop motion cai como uma luva justamente pelo fato de sua mobilidade parecer mais “artificial” do que a animação em 3D, o que contribui para o tom preterido pelo diretor de não antropomorfizar as expressões não-humanas e não infantilizar a forma como aborda os temas. Mas se podemos dizer algo assim em comparação com a fluidez, definitivamente não altera o fato do trabalho do diretor de animação Mark Waring ser primoroso, dos detalhes na direção de arte e nos ambientes que se contrastam entre os palácios de Megasaki e as regiões desoladas da ilha; até a capacidade de dar vida e substância para os personagens através de detalhes importantes – alguns desses, por exemplo, os olhos lacrimejantes em momentos onde eles se emocionam e a preocupação em manter a coerência até na hora de mostrar detalhes tradicionalmente trabalhosos para a animação, como movimentos de pelos, água e fumaça. A sensação é de um longo e árduo trabalho manual que dá como recompensa um belo visual a serviço da narrativa e do próprio estilo do diretor.

Tudo isso sem deixar de mencionar, claro, a já conhecida obsessão pela simetria de suas composições e pela frontalidade na forma como tudo é mostrado na tela, com os movimentos de câmera restritos a travellings unicamente horizontais e verticais, fazendo com que a narrativa, em alguns momentos, se desenvolva como blocos de ação que se intercalam quase em forma de slides, transmitindo um curioso senso de um observador que acompanha a trama como se lesse um esquema de algum projeto técnico com suas limitações e regras espaciais pré-definidas. Esse talvez seja o elemento mais usado para caracterizar a obra do diretor e é o que mais surge como uma certa transgressão na pretensão de despertar reações calorosas através de uma estética que tende ao efeito oposto.

Além disso, Anderson usa isso em seu favor para inserir um elemento de humor que funciona sempre por quebrar a proposital automatização de sua narrativa. É particularmente eficaz, por exemplo, como as confusões e os embates físicos ganham um tom cartunesco na medida em que relativizam o choque de imaginarmos a gravidade das situações caso estivéssemos em um filme apocalíptico ou drama mais pesado. Fora isso, o roteiro – também do diretor – não exagera na tentativa e faz com que as piadas funcionem muito bem aliadas à maneira como as caracterizações trabalham com as vozes de seus intérpretes. Assim como ocorre em seus outros trabalhos, os personagens se comunicam com falas mais pausadas e controladas, como se procurassem o tempo todo o timing perfeito para usar os silêncios desconfortáveis como uma gag. O destaque vai para a dignidade e orgulho impressos por Bryan Cranston em Chief, a inocência cativante de Rex por Edward Norton e a sempre distinta voz de Jeff Goldblum em mais um personagem com a estranheza de sua persona. Fora esses, ainda há a participação de Bob Balaban, Bill Murray, Frances McDormand, Harvey Keitel, F.Murray Abraham, Tilda Swinton e até Yoko Ono.

Já outros acabam inexplicavelmente surgindo com algum potencial e desaparecendo quase que completamente, como é o caso de Nutmeg (Scarlett Johansson), cujo arco prometia inserir algumas boas discussões sobre gênero e se somar ao arsenal de ideias que o filme coloca em suas entrelinhas. Quer dizer… não exatamente nas entrelinhas, já que os comentários sobre regimes autoritários, propaganda manipulativa e limpeza étnica são bastante óbvios, principalmente nas figuras do prefeito Kobayashi, na líder estudantil pró-cães Tracy Walker (Greta Gerwig) e no cientista que procura desenvolver a cura para a gripe canina, interpretado por Ken Watanabi. Também não é acidental o fato de nossa identificação com os personagens caninos se dar pelo fato (entre outros) de se comunicarem em inglês, sendo essa a língua que ganha a tradução no filme, enquanto que os humanos (fora a americana, Tracy) falam em japonês sem tradução para o público. Debates sobre a estereotipação dos orientais à parte, o recurso nos coloca indubitavelmente na pele e na maneira de ver o mundo do melhor amigo do homem.

O que também não torna as discussões particularmente profundas, ainda mais se levarmos em conta que a leveza da história acaba fazendo com que sua resolução aconteça de forma meio facilitada, tirando um pouco da urgência que se esperava considerando o plot principal. Em compensação, não se pode dizer que é de todo incoerente se levarmos em conta o caráter fabulesco da história (o início é basicamente um conto de herói ancestral).

Ilha dos Cachorros mantém as características de Wes Anderson e ainda consegue contar uma história interessante, com bons personagens e uma aura que apela para nossos laços afetivos com os cachorros.

Ps: não se sinta muito ofendido se for muito fã dos gatos.

Nota: 

Trailer

https://www.youtube.com/watch?v=bxjsxi8s8YE

Data de lançamento: 19 de julho de 2018 (1h 45min)

Direção: Wes Anderson

Elenco: Kunichi Nomura, Liev Schreiber, Koyu Rankin, Bryan Cranston, Edward Norton, Jeff Goldblum, Bob Balaban, Bill Murray, Frances McDormand, Harvey Keitel, F.Murray Abraham, Tilda Swinton, Yoko Ono, Scarlett Johansson, Greta Gerwig, Ken Watanabi

Sinopse: Atari Kobayashi é um garoto japonês de 12 anos de idade. Ele mora na cidade de Megasaki, sob tutela do corrupto prefeito Kobayashi. O político aprova uma nova lei que proíbe os cachorros de morarem no local, fazendo com que todos os animais sejam enviados a uma ilha vizinha repleta de lixo. Mas o pequeno Atari não aceita se separar do cachorro Spots. Ele convoca os amigos, rouba um jato em miniatura em parte em busca de seu fiel amigo. A aventura vai transformar completamente a vida da cidade.

 

Mais do NoSet

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *