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CRÍTICAS

Crítica: Herege

Crítica: Herege
  • Publicado em: novembro 17, 2024

Até que ponto podemos confiar na nossa fé? Com essa chamada, que mais parece introdução de cartilhas evangélicas, abro esse texto para falar de um filme de terror psicológico que estreia essa semana, em que temos nosso eterno galã Hugh Grant fazendo de gato e sapato com a crença de duas jovens mórmons. O filme é o esperado Herege (Heretic, 2024), com direção de Scott Beck e Bryan Woods, que adentra nas salas de cinema brasileiros na quinta-feira.

A irmã Barnes e a irmã Paxton são duas pregadoras mórmons que passam o dia tentando atrair novos seguidores para a sua crença. Entre risadas e deboches de jovens da comunidade, seguem firmes propagando o que acreditam. E um dia, na última visita delas, vão conhecer o Sr. Reed, que supostamente teria interesse na doutrinação. Ao chegar na casa dele, são muito bem recebidas pelo anfitrião, que manda as meninas entrarem. Bom de papo, diz que sua esposa, a Sra. Reed, está em casa (se não tivesse mulheres em casa, as meninas mórmons, pela religião, não poderiam entrar) preparando uma suculenta torta de mirtilo. Mas aos poucos, Sr. Reed começa a provocar as meninas, testando seus conhecimentos e os limites da fé, e acaba propondo um jogo de gato e rato na engenhosa casa, onde Paxton e Barnes, além de ter que refletir muito sobre suas certezas, tem que lutar por suas vidas.

A dupla Beck e Woods ataca novamente nesse interessante filme de terror que mistura devoção religiosa, fé confrontada, em um jogo de persuasão mental que prende o espectador do início ao fim da trama. Com roteiro riquíssimo em diálogos construtivos, misturando teologia, cultura pop, questionamentos da fé e tendo como cenário uma sinistra casa com aqueles elementos óbvios do gênero, porões ameaçadores, portas fechadas, escadarias, velas e muita escuridão. A casa do Sr. Reed é um personagem a mais e o filme vira um escape room, em que as duas jovens missionárias têm que lutar contra as maluquices do anfitrião.

Uma trama espetacular, principalmente na primeira hora, é quase impossível piscar de tamanha tensão. Sr. Reed, bagunça com a fé das meninas, uma ferrenha adepta mórmom e a outra vítima de um trauma, que acaba se entregando à religião de Joseph Smith Júnior. Mas as duas também sabem se defender e acabam mesmo acuadas e literalmente raptadas, tentam rebater as blasfêmias e maliciosas tais profanações do dono da casa da colina. Mesmo não perdendo o fôlego, infelizmente a dupla de roteiristas acaba usando soluções mais fáceis e previsíveis, abusando da boa vontade e (por que não?) da fé do espectador na parte final do filme, ajudando a diminuir o tamanho de um filme que tinha tudo para ser um formidável e inclassificável filme de horror.

O que ajuda muito na construção desse cenário, fora a casa e que é o quarto e sinistro elemento da trama, é o excelente trio de atores. Tanto Sophie Tatcher, a irmã Barnes, que mesmo fiel às suas crenças sabe se defender, enfrentando as provocações mundanas do Sr. Reed, quanto Chloe East, como a ingênua e fervorosa irmã Paxton, entregam uma grande interpretação, tanto na parte do horror psicológico, quanto na fase quente do filme, em que são exigidas fisicamente. Mas é Hugh Grant que dá seu pequeno show. Com uma elegância e sofisticação únicas, nos apresenta um vigoroso e malicioso vilão, o Sr. Reed. Com sua finesse de sempre, desconstroi as meninas com indagações sarcásticas, apresentando provas históricas, deboches e comparações de como a religião, plágios musicais e jogos de tabuleiro são apenas uma reciclagem de ideias para a dominação de mentes incautas. E tudo isso sem perder a pose, numa atuação de gala do eterno bonitão inglês. Assustando mas usando e abusando do bom humor deliciosamente sutil.

Herege acaba sendo mais uma grata surpresa do terror da A24 no ano. Mesmo que abuse desse discurso, de que vivemos bombardeados de grandes porcarias do gênero, lançadas semanalmente, esse ano tivemos grandes acertos no terror e Herege é um deles. Um filme que nos faz refletir, assusta quando tem que assustar e nos transforma em voyeur, num clássico jogo de caça e caçador. Tudo isso embalado por bons diálogos e atuações vigorosas. Mesmo que cutuque algumas feridas na crença e em alguns absurdos da religião, não se aprofunda demais na crítica, o que é bom e deixa tanto os personagens quanto o espectador definirem o que é melhor para si mesmo. Tanto faz se formos adeptos do lema, como diria o poeta, “acreditar, eu não”, ou se formos daqueles em que a fé faz realizar o impossível, Herege não machuca ninguém, apenas nos diverte num filme acima da média.

Written By
Lauro Roth