Crítica: A Forma da Água | e o retorno de Guillermo del Toro ao que faz de melhor.

Uma característica do Cinema que sempre me fascina é a sua capacidade de representar visualmente nossas imaginações mais férteis. Se num livro, por exemplo, somos transportados através de uma subjetividade que exige bastante do nosso poder de fantasiar e preencher as lacunas de acordo com nossa própria visão, os filmes nos convidam a mergulhar num universo que já tem a atenção dos nossos olhos. É um poder único que faz com que algumas horas de nossa realidade desapareçam diante de outra “menos real”, repleta de pequenas e grandes “mentiras” que têm o poder de nos emocionar genuinamente a partir de algo que só existe numa tela.

Quanto mais fantasiosas, mais essas histórias tem a capacidade de servirem como contos de moral e representações de valores humanos através de narrativas com alcance universal. Talvez as mais emblemáticas e comuns dessas são os contos de fada: histórias modificadas ao longo do tempo (várias delas eram mais cruas e bem menos infantis) que tem como principal característica uma lição categórica sobre o certo e o errado. Mas se há os clássicos infantis que funcionam com seu público alvo, há a subversão deles; e aí notamos que, mesmo a moral da história sendo a mesma, os caminhos são mais tortuosos e podem muito bem refletir a dureza da realidade ao invés da utopia da fantasia.

Ou então pode-se simplesmente misturar a forma de um com a mensagem do outro, e é aí que entra a principal marca de Guillermo del Toro, cineasta mexicano que tem se tornado uma referência na arte de unir a excelência no visual com fantasias mais adultas. Em 2006, com O Labirinto do Fauno (sua obra-prima), criou um conto fantástico que falava sobre a imaginação em tempos de guerra usando uma trama de contos de fada com uma protagonista criança à beira de perder completamente sua inocência. Agora, retorna com uma estrutura similar, mas um pouco mais romântico e mais assertivo quanto à sua temática. A Forma da Água eleva novamente as qualidades do diretor, além de servir como um ótimo exemplo de como se utilizar do bom escapismo (afinal, ainda é um conto de fadas) quando parece que ele não tem mais espaço no nosso mundo cínico.

Mas o termo ”escapismo” não significa algo ruim ou artificial, como muita gente pode pensar. A definição é mais simples: fugir da realidade conscientemente a fim de buscar momentos de entretenimento; melhor ainda quando este vem cheio de reflexões, como é o caso desta nova obra de do cineasta. Na trama, Elisa Esposito (Sally Hawkins) mora sozinha e é vizinha de Giles (Richard Jenkins), outro solitário que está insatisfeito com o trabalho de desenhista para publicidade, onde julga não aproveitar o máximo de sua capacidade. Muda, Elisa tem dificuldades de se comunicar normalmente e por isso se acostumou a ter como amigos apenas Giles e Zelda (Octavia Spencer), que assim como Elisa, é faxineira de um centro de pesquisas militar americano. Certo dia, chega ao local uma criatura anfíbia humanoide (Doug Jones) para ser estudada pelo Dr. Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), sob a supervisão de Richard Strickand (Michael Shannon).

O fio condutor é a relação que vai se criando entre Elisa e a criatura. O roteiro, escrito pelo diretor em colaboração com Vanessa Taylor, escolhe contar uma história de amor usando elementos que permitem que essa jornada seja livre para se apoiar em tradições que trabalham a favor do objetivo da obra: usar os personagens e o ambiente para um conto de “moral da história”. Se observarmos bem, importa menos que os personagens sejam desenvolvidos internamente do que sirvam como representantes de valores que serão usados como conflitos nas verdadeiras temáticas do filme: o racismo, a homofobia e a sensação de isolamento que o preconceito causa de maneira geral; ainda mais, a busca por aceitação e o conforto nos semelhantes.

A abordagem de del Toro, portanto, permite que os personagens representem os mocinhos e os vilões sem se preocupar muito em se distanciar de um maniqueísmo. Assim, Strickland, interpretado com a intensidade magnética de sempre por Michael Shannon, é claramente a representação do “vilão” que tem como ameaça a moral rígida e o tradicionalismo americano que rejeitava tudo que era diferente na época em que se passa a história (Guerra Fria). Do mesmo modo, Elisa é a contraposição que não consegue ter voz (literal e figurativamente) e que percebeu o quanto se sentia sozinha quando viu na criatura, que também se comunica com sinais, uma alma gêmea – Sally Hawkins, aliás, faz um trabalho excepcional e tocante transferindo todos os sentimentos da personagem para suas expressões. Todos esses personagens estão inseridos numa narrativa que sabe o caráter fabulesco que tem e até por isso somos levados a aceitar que aquela realidade não corresponde às expectativas que teríamos numa obra diferente. Tudo que existe aqui funciona para nos transportar para a sua fábula peculiar, tanto na história como no visual.

Essa lógica fantástica proposta pelo filme não funcionaria sem o conhecido apuro estético de seu condutor. Com um design de produção excepcional, os ambientes principais da trama refletem tanto as características de quem os habita quanto são um resultado referencial das influências do cineasta. Não muito preocupados em parecer realistas, os ambientes da instalação militar, principalmente o que abriga a criatura, são repletos de formas e espaços escuros e cheios de fumaça que dão um aspecto meio lúdico para o local, o que acaba lembrando os filmes de espionagem da década de 50, que traziam influências de cenários fantásticos (e que bebiam do expressionismo), e mesmo em outros ambientes, o cenário parece pender sempre para fugir de uma realidade restrita.

Tudo isso é somado a um trabalho de fotografia certeiro feito por Dan Lausten (que também trabalhou com o diretor em A Colina Escarlate). É interessante notar, por exemplo, como, mesmo que haja diferença entre o aspecto mais “sujo” e metálico do centro de pesquisas com as cores mais quentes dos apartamentos de Elise e Giles, Lausten e del Toro representam a solidão desses através de sombras que atravessam a sala, quadros e rostos dos personagens. Já quando Elise se encontra com a criatura, o tom predominante é pontuado com destaque sempre que esta aparece para a protagonista. Falando em tom, a cor verde é predominante tanto na fotografia como no cenário e figurinos (ainda mais nos 2/3 iniciais), e é interessante notar como ela se relaciona à receptividade de Elise* (o banheiro, principalmente) e a uma ideia de afetividade e aceitação num escopo maior; o que torna revelador, por exemplo, quando certo personagem diz que “o verde é o futuro”, enquanto que o moralista e preconceituoso Strickland recusa o rótulo da cor ao seu carro (que também representa o selfmade man americano). Além disso, a predominância do verde acaba sendo pontuada pelo azul que vem da criatura, fazendo parte de sua própria caracterização, além de surgir como um dos elementos determinantes para um dos aspectos mágicos que contribuem para a sensação de fantasia.

Outro ponto evidente de A Forma da Água é sua riqueza temática. Nesse sentido, apesar de não questionar a lógica, o roteiro tem algumas facilitações e uma certa pressa que parece descompassar um pouco a ligação emocional entre Elise e a criatura – e devo dizer que só me senti realmente compelido quando o filme se aproxima do 3º ato e consegue criar belas sequências que se utilizam desses temas e das referências pretendidas por del Toro. E falando em temas, vários deles tem o mérito de serem trabalhados com um encaixe perfeito com a trama, como as metáforas que envolvem a pureza de uma criatura “divina” e o fato de retratar a sexualidade como parte importante dos anseios da protagonista. Já outros carecem de um pouco mais de sutileza e, embora não configurem nenhum defeito grave, são obviamente explicitados por alguns diálogos e referências que funcionam mais por sua execução isolada, principalmente as que envolvem o racismo e a paixão dos personagens (e do diretor) pelo próprio cinema (Elise vive literalmente em cima de um).

Mas apesar de pequenos deslizes, Gillermo Del Toro conduz com segurança a narrativa e consegue o objetivo de mergulhar o espectador em sua fantasia/tributo aos contos de fada e ao Cinema. Se guiando com fluidez pela câmera e pelas transições – particularmente, gosto de todas que envolvem a água como ligação gráfica e emocional – e embalado com a bela trilha original de Alexandre Desplat, que reflete um certo tom de melancolia necessária à abordagem, nossa viagem pela trajetória de Elise acaba conquistando ao final. A Forma da Água é o retorno de um artista ao que parece ser seu lugar de conforto.

Caro leitor, a crítica nada mais é que uma defesa de uma tese sobre a visão de um filme, portanto, nada mais justo que oferecer um contraponto (ou uma adição) acerca de algum elemento presente no texto (mesmo que seja por mim mesmo, o próprio autor da crítica). Pelo fato de ter ficado fascinado com o uso das cores no filme, fui buscar entrevistas com alguns dos profissionais que trabalharam no seu departamento de arte e percebi que deixei de notar aspectos importantes sobre a predominância da cor verde. Em relação às outras cores, mantém-se a interpretação (inclusive a do azul), porém o verde, que inicialmente seria relativo à receptividade de Elise (o que acaba perdendo o sentido, já que a mesma cor está presente no ambiente que constantemente a oprime), se liga de maneira mais correta à uma sensação contrária de aprisionamento e/ou tradicionalismo, tanto que está presente justamente no cativeiro da criatura e em vários locais da instalação militar. Assim, ele aparece no início (sem spoilers) representando o isolamento de Elise e também é relacionado ao “futuro”, como diz certo personagem. Só que este futuro é mais uma ironia, ou o senso comum e tradição. É o futuro que a sociedade americana acredita baseada nos valores tradicionais. Quando Strickland rejeita o verde do carro, ele está querendo “se livrar” da responsabilidade de seu próprio preconceito, mas sem sucesso, já que todo mundo ainda acha que seu carro é verde. E para Elise tudo se encaixa ainda mais e assim que ela vai se apaixonando pelo monstro, as cores quentes começam a aparecer no seu figurino, nos seus sapatos e, principalmente, no seu banheiro (que antes era verde) de maneira gritantemente diferente, simbolizando a óbvia mudança na vida da protagonista.

Isso tudo mostra como del Toro é um cineasta que pensa na linguagem e como nós cinéfilos sempre temos o que aprender com quem domina o Cinema ;).

Nota:

Trailer

Data de lançamento: 01 de fevereiro de 2018 (2h 3min)

Direção: Gillermo del Toro

Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins, Octavia Spencer, Michael Stuhlbarg, Doug Jones, David Hewlet, Nick Searcy

Sinopse: Elisa é uma zeladora muda que trabalha em um laboratório onde um homem anfíbio está sendo mantido em cativeiro. Quando ela se apaixona pela criatura, elabora um plano para ajudá-lo a escapar com a ajuda de seu vizinho.

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