Crítica – Família de Aluguel
Acredito que muitas pessoas já tenham feito um exercício mental e visualizaram seu próprio enterro, quem iria, se ia ser bem prestigiado, como seriam as homenagens, por mais mórbido que seja, é do ser humano vislumbrar a sua partida. Mas alguém pagar para outras pessoas irem numa simulação de seu velório, com direito a você entrar em um caixão e figurantes lotarem o “evento”, confesso que não sabia que era algo que existia. Esse mundo onde os desejos são realizados em um vida de mentira em busca de prazer e felicidade é tema principal de Família de Aluguel (Rental Family, 2025), da diretora japonesa Hikari.
Philip é um estadunidense que tenta a vida como ator no Japão há alguns anos. Ficou famoso por lá estrelando um comercial de pasta de dentes e acabou ficando pela Terra do Sol Nascente. Vivendo de bicos e pequenos papeis, é contratado para ser um figurante americano de um fictício enterro, onde acaba conhecendo uma empresa que vende sonhos e uma vida de mentira para quem quiser. Phillip, no início hesita, mas acaba aceitando, pela grana, ser um marido de mentira para uma menina de uma família conservadora que jamais aceitaria que ela é lesbica e vai levando papeis conforme o cliente quer. Dois em especial mexem com ele. Um deles é ser contratado para ser o pai estadunidense de uma menina que o pai verdadeiro a abandonou e ela não o conheceu e outro é ser um falso jornalista que tem que fazer uma matéria (fake) para um veteranto ator que vive do passado e também começa a sofrer com sua demência. Mas Philip não se conforma com essa vida de mentiras e acaba passando dos limites de um papel alugado para se comover com o drama de seus clientes.

Uma vez vi numa entrevista que o nosso síndico Tim Maia, na solidão da noite, contratava prostitutas para ir à sua casa. Mas ele não queria nem tocar nelas, apenas queria companhia de desconhecidas para ajudar a aliviar seu sofrimento e sua solitude, ter alguém que ouça e converse com ele. Pois então, no Japão, terra da diretora Hikari, é muito comum pessoas contratarem atores apenas para se passar por figurantes de sua vida. O que para olhos ocidentais parece um disparate, onde até o personagem de Brendan Fraser pergunta: não seria melhor terapia que alugar alguém para saciar seus problemas? E ele tem como resposta que no Japão terapia não é vista com bons olhos e a solução são essas pessoas, além de ser mais aceito na sociedade esses simulacros de vida em busca de um prazer estéril mas confortante. E no filme, a diretora, através dos olhos de um estadunidense que também sofre com sua solidão e auto exílio no Japão, é quase um peixe fora d’água na situação, mas a grana era boa, só que o grande problema é separar o profissional do sentimental. E Brendan Fraser, um dos atores mais carismáticos de Hollywood, tem as expressões perfeitas para o conforto de quem o contrata com muita generosidade, simpatia e humanismo.

Além de ser um retrato a esse lado carente afetivo do povo japonês, é um cartão postal do próprio país, com uma fotografia belíssima de Takuro Ishizaka, em que desde a vegetação de Tóquio é contemplada, os montes distantes, a megalópole enquadrada de todos os jeitos, os trens, o habitat do japonês mostrado com a sensibilidade perfeita de só de quem é de lá.
A escolha de Brendan Fraser foi um golaço da diretora, ele com todo aquele tamanho, que é proporcional ao seu gigante coração, mesmo com toda a sua angústia interior, consegue passar humanidade ao sua ingrata tarefa de fazer os outros felizes vivendo uma mentira. Humanidade demais, que gera reprovação de seu chefe da agência de rental family, onde é proibido qualquer ligação com os clientes fora do script pré-determinado do trabalho. Mas como a vida não imita a arte, muitas vezes o roteiro muitas vezes sai do prumo e onde tem pessoas, tem afeto amor e doação. Phillip acaba se encantando com a pequena Mia (Shannon Gorman) tentando suprir a ausência do pai dela e também é o único que dá valor ao veterando Kikuo, homem cheio de histórias que ninguém mais se interessa, mas os ombros e ouvidos do amigo (mesmo que de aluguel) servem como alegria na vida do velho ator.

Mesmo que o filme não fuja muito do óbvio de produções similares, como essa ligação mais que esperada entre contratante e contratado, não utiliza artifícios clichês para nos banhar em lágrimas. Tudo é muito singelo, nada forçado e acaba provocando sentimentos como pena, pela necessidade que uns tem para pagar pela felicidade, por companhia, para a realização dos sonhos e fantasias, que para os olhos dos ocidentais, principalmente dos latinos, onde aparenteme ficamos amigos até das árvores da esquina e contamos nossas vidas até para cachorros de rua se necessário. Perde-se um pouco no aprofundamento das questões mais íntimas de tais relacionamentos, tudo é muito tangente e de fácil resolução, mas é uma boa diversão, emociona na temperatura certa e um retrato chocante desse tipo de serviço que desde os anos 1990 existe no Japão, que é vender uma vida em que nada é real. E prova que no fundo do fundo todos queremos apenas buscarmos os caminhos para nossa realização, e que mesmo não pagos, às vezes também criamos papeis conforme a necessidade para sermos aceitos ou enfrentarmos algumas situações. E nesse quesito, que é buscar o conforto e nossa paz, vale qualquer coisa, desde mentiras sinceras, hipocrisia e por que não um ator para dar vida a isso tudo?
