Crítica – Emilia Pérez

Uma vez, lendo o genial Ruy Castro, ele dizia que não entendia quem abominava filmes musicais porque eram irreais e as pessoas não saem cantando e dançando na vida ou nas ruas sem motivação. E aí ele dizia que era óbvio que não podia ser real, aquilo era um gênero cinematográfico, e rebatia dizendo: quantos monstros a gente via na rua, alienígenas atacando a Terra e psicopatas com máscara de hockey correndo com facas atrás das vítimas? Ou seja, terror e ficção científica também são gêneros musicais com suas licenças poéticas regadas à fantasia. Eu confesso que sou daquele time que se incomoda com musicas que, a todo momento, em qualquer diálogo, os personagens estão cantarolando numa felicidade plena. E inserindo o teor do assunto, um musical criminal (que subgênero), em que o tema é o narcotráfico mexicano, falo do filme mais amado e odiado do último ano, Emilia Pérez, produção francesa, que de francesa quase não tem nada, e segundo os mexicanos, de mexicano também não tem, com direção de Jacques Audiard.

Em um México dominado por facções do narcotráfico, a advogada Rita Castro segue sua vida nos tribunais, até que um noite é sequestrada pelo temível chefão de cartel Juan Manitas del Monte. Ele faz uma proposta para a advogada de ajudá-lo a fazer uma sigilosa operação de troca de sexo, em troca de muito dinheiro, com isso pretende acabar com sua vida pregressa e viver como o que realmente é, uma mulher. Anos depois, com o sucesso da operação, Juan hoje se chama Emilia Pérez, acaba encontrando Rita e pede mais uma vez sua ajuda, pois quer rever sua ex-mulher e seus filhos, arriscando colocar abaixo toda sua nova vida e aguçando velhas rivalidades do tráfico.

Enfim chega aos cinemas brasileiros essa produção francesa com 13 indicações ao Oscar, e que até o anúncio dos indicados, era uma dos filmes mais cultuados de 2024. Mas graças à imbecil rivalidade criada entre ele o brasileiro Ainda Estou Aqui, virou persona non grata no nosso país, além de ser execrado no México, porque o seu povo achou de péssimo gosto a caracterização do país pelos franceses e o espanhol falado por certos atores como Selena Gomez.
Mas polêmicas à parte, Emilia Pérez é um baita filme. Com certeza, pelos motivos que citei e que Ruy Castro fala, muita gente vai se incomodar com o excesso de cantorias pitorescas e inusitadas da trama, mas foi um artifício que Audiard usou para ilustrar essa fábula de autoaceitação e arrependimento do passado. Tudo funciona muito bem na película, com números musicas de tirar o fôlego (com excessão de uma, na clínica de troca de sexo, que beira o constragendor), com coreografias de Damien Jalet.

As músicas, na maioria das vezes, funcionam muito bem, são de autoria da compositora francesa Camille. A montagem é brilhante, deixando pouco tempo para arestas na trama, além do roteiro com inclinação operística do próprio Audiard com inspiração na obra de Boris Razon. Um filme tecnicamente perfeito, que faz as duas horas de produção passarem rápido, e mesmo tendo como pano de fundo um assunto tão espinhoso como a violência em território mexicano, o diretor consegue passar ternura e conduzir a epopeia de Emilia, recheada de dramas existenciais, ciúmes, amor pela família, muito dinheiro e poder. Por mais que uns digam que o olhar de um europeu não é valido, sobre a realidade do país da América do Norte, Audiard sempre se aventurou, em outras películas, sobre outras culturas. E vamos combinar, se somos um mundo globalizado, qual o problema de sairmos do nosso cercado e ousarmos em um mundo cada vez com menos fronteiras (culturais, é claro)?
O show de câmeras do diretor de fotografia, Paul Guillaume, aponta as cores certas para cada coreografia, abusando de luzes no foco do protagonista que canta, fazendo desde um salão de um restaurante, uma clínica ou o movimento de faxineiras limpando, um palco para a dança e a música brilhar.

Emilia Pérez é um filme de atrizes. O trio principal brilha muito. Zoë Saldaña, como a corajosa e ambiciosa Rita Castro, comanda o filme. Sua transformação de uma advogada cheia de perrengues, a ter o futuro do narcotraficante nas suas mãos, e depois tentar ser o meio de campo de Emília para rever a família, Rita vai amadurecendo e ganhando casca. Mesmo com um voz pequena, agrada nos números musicais e bate um bolão nas coreografias. Selena Gomez, criticada por seu espanhol ruim, também está excelente como Jessi, a mulher que sofre com a perda do marido, obrigada a criar os filhos sozinha e depois é obrigada a enfrentar uma nova velha pessoa, que passa a ser inimigo dela. Não preciso dizer que ela manda bem nas canções.

E vou dizer de quem eu esperava mais, já que muita gente falava super bem das atuações, é Karla Sofía Gascón, primeira atriz transgênero a concorrer ao Oscar, tem seu nome na película, mas não achei sua atuação tão brilhante. Mesmo interpretando seu passado como Manitas, e depois a explendorosa e nova mulher, humana e terna que se tornou, acho que o filme a esconde demais e tudo ali soa exagerado, dando ares de novelão mexicano e abusando dos esteriótipos. Longe de ser uma atuação ruim, mas tinha uma expectativa de uma régua mais elevada na sua performance.
Emilia Pérez, tirando ufanismos de lado, não é para qualquer um. Muitos irão se aborrecer com os incontáveis números musicais, achar a história absurda e não irão comprar a épica história de Emilia. E isso, independente da torcida pro Ainda Estou Aqui e pra Fernanda Torres. Mas, na mesma equação, é um filme que vai agradar demais a muita gente, e mesmo não sendo a tal obra de arte apregoado por alguns, tem primor técnico, aula de cinema moderno, é rebelde, ousado, uma história de redescoberta, de arrependimentos passados, libertação e busca de felicidade, ou como diria a própria Emília: mudar o corpo, mudar a alma e mudando a alma, pode-se mudar uma sociedade. E essa metáfora da mudança em busca do conforto, tanto do corpo, quanto do espírito e uma nova chance de fazer o bem, são o mote desse inusitado filme, que como disse antes, vai dividir opiniões, o que por si, já terá feito sua história.
