Crítica – Anora
Um dos grandes problemas para a crítica nacional é quando as distribuidoras seguram filmes lançados no exterior há meses para liberar apenas em épocas de premiações como Globo de Ouro ou Oscar. O que faz com que a grande leva de filmes no verão brasileiro já sejam velhas novidades fora do Brasil. Um dos casos é o vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2024, Anora (idem). O filme de Sean Baker teve sua estreia mundial (fora Cannes) em outubro e apenas está chegando ao Brasil agora no mês de janeiro, que em tempos ansiosos e de velocidade de informação, quase já chega cheirando à naftalina.
Anora é uma dama da noite, leia-se prostituta, que bate ponto todas as noites na boate QG. Em quase um ritmo frenético serve como mercadoria sexual para todo o tipo de cliente em busca de prazer pago. Ela tem descendência uzbequistanesa e um dia é avisada que um menino russo está por lá, e como entende um pouco a língua, vai fazer companhia pro garoto. Os dois logo começam a ter uma sintonia das boas, tanto na cama quanto nas ideais, e ela descobre que ganhou um bilhete premiado ao saber que ele é filho de Nikolai Zakharov, um bilionário russo. Anora e Ivan então engatam um romance regado a sexo, festas, esbanjamento de dinheiro e acabam casando, o que faria com que Igor se tornasse um cidadão estadunidense. Só que a família de Igor jamais iria aceitar isso e manda um time de atrapalhados capangas para pôr fim na festa do casal e além de exigirem a anulação do casamento, querem Anora longe do mimado e irresponsável Ivan.
Sean Baker nos apresentou um dos melhores filmes do ano passado, que infelizmente tive o prazer de acompanhar apenas esse ano. Com roteiro do próprio Sean, capricha num drama que jamais perde a graça. Numa espécie de Eduardo e Mônica, num quadro de um casal que jamais poderia ter dado certo, por um momento acreditamos na relação entre o fútil, desprezível e mimado Ivan, mas que demonstra carinho com Anora, uma menina batalhadora, sonhadora e carente que vê no menino, além de atenção que jamais teve nos seus 23 anos de vida, um trampolim de ascensão social que cai como uma luva na sua vida ralando na boate.
Mas o que mais parecia ser um Uma Linda Mulher, sem a elegância e o glamour do filme de 1991, mas uma versão frenética regada a muito sexo, farra, bebedeiras, em ritmo de tik tok, acaba se tornando um grande pesadelo, ou como alguns contos de fada, tudo acaba se tranformando em abóbora, ou melhor, um abacaxi na vida da menina.
Na virada do filme para o segundo ato, uma turma de capangas também de origem do leste europeu, são incubidos de acabar com o conto de fadas dos pombinhos da geração Z. O que se vê então é um flerte da trama com a comédia screwball, leia-se maluca. Desde a hilária cena em que os três pau mandados do russo Zakharov, Toros, Igor e Garnick, lembrando Os Três Patetas, tentam controlar uma descontrolada Anora que grita, chuta, esperneia contra a ameaça deles e que vê seu covarde amado fugir, tudo vira uma sucessão de erros e perrengues no dia do quarteto, que precisam ir atrás de Ivan, que é quando Anora realmente conhece a verdadeira personalidade do infantil marido.
Com um trabalho caprichado de câmeras, as cenas do tórrido romance dos dois na fase de amor é tudo filmado de maneira muito explícita, sem pudor, dosando os momentos românticos do início da relação, até os picantes, mecânicos e intensos já do final da relação. Uma maneira eficiente de, em imagens, contar como a rapidez dos romances atuais vão, cada vez em menos tempo, do romantismo para a mecanização e depois para o inevitável fim. Talvez uma edição mais enxuta poderia tirar uns 20 minutos do filme, já que as quase 2 horas e 20 minutos às vezes tornam cansativo e quebram o ritmo das duas partes do filme.
Nessa montanha-russa que é roteiro, quem tem destaque é Mikey Madison. A atriz é dona do filme como Anora, uma aguerrida e decidida mulher, movida pela ambição, mas que no fundo, mesmo com toda sua pseudosegurança, sofre como uma pessoa muitas vezes desprezada pela profissão, descartada tanto pelos clientes que a usam por um punhado de dólares, quanto pela esnobe família dos russos, que jamais pensa nos sentimentos da moça, que vê seu castelo desmoronar em um dia. Uma atuação marcante e merecedora de indicações para prêmios. Dentre os outros atores merece destaque Yura Borisov, como o capanga Igor. O que começa como um durão cumpridor de ordens, aos poucos vai se comovendo com o desprezo que todos naquele mundo esnobe tem com Ani (Anora) e é o único que realmente no decorrer do filme se preocupa com o ser humano que é a sonhadora e menosprezada prostituta. O que fica claro na emblemática cena final, em que a personagem realmente extravasa seus impulsos e sentimentos numa espécie de gratidão e entrega a quem realmente parece merecer.
Anora é um conto de fadas sem final feliz, sem sapatinho de cristal e sem príncipe encantado, fala muito da nossa realidade atual, em que uma geração se perde em futilidade e prazeres instantâneos e despreza e machuca o outro, como alguém apaga um post numa rede social. Mostra um abismo profundo de desprezo social motivado pela renda e o poder e o preconceito eterno contra a prostituição ou o patético termo “mulheres de vida fácil”, que de fácil não tem nada…