Crítica: A Primeira Profecia
Tem coisas que não se deve fazer na vida. Se um time está ganhando, mantenha a escalação vencedora sempre. Se um filme fez sucesso no passado, não é bom inventar e mexer com ele, ainda mais se ele tem o aval do diabo. Brincadeiras à parte, quando anunciaram que teríamos um prequel, ou uma origem do Damien, leia-se, o nosso anticristo preferido do ótimo A Profecia, de 1976 (The Omen), confesso que fiquei com o pé atrás. Mas felizmente, estava completamente enganado e A Primeira Profecia (The First Omen, 2024), com direção da novata Arkasha Stevenson, é um terror de alta categoria.
Roma, 1971, Margaret, uma freira estadunidense, atende o pedido de um padre que a conhece desde os tempos de orfanato para fazer os votos de fé na capital italiana. Lá passa os dias em uma escola de meninas abandonadas, comandadas pela Irmã Silvia. Uma das meninas é a introspectiva e misteriosa Carlita Skianna, que acaba gerando atenção especial de Margaret. No local, se torna colega de quarto de Luz Valez, que parece querer viver doidamente os últimos dias antes de se doar ao Senhor, provocando mais dúvidas cabulosas na americana. Mas existe algo de podre no reino do Orfanato Vizzardelli e estranhos acontecimentos ocorrem no caminho de Margaret até que o Padre Brennan comunica a noviça que uma conspiração diabólica está em curso.
Depois de grandes decepções, como O Exorcista – O Legado, que não tinha exorcista ano passado, um morno A Morte do Demônio, as expectativas eram grandes para o longa de Arkasha, e ela conseguiu, com grande talento, criar um filme com uma atmosfera dos grandes clássicos do terror sobrenatural dos anos 1970. Desde a fotografia nebulosa, com o tom certo para a penumbra dos corredores sacros de Aaron Morton, a excelente trilha sonora de Mark Korven, emulando as sinistras passagens de Ave Satani do original de 1976, de Jerry Goldsmith, além de uma reconstituição fidedigna e rica em detalhes de uma Roma em polvorosa em 1971.
Mais que um filme de terror, é uma recriação de uma época, não só na Itália ou no mundo, onde protestos tanto da classe trabalhadora, quanto de estudantes marcavam o país da bota e abriam a sanguinária década marcada pela violência das brigadas vermelhas. O roteiro de Tom Smith, Keith Thomas e a própria Arkasha, pincelam um retrato de uma época em que a igreja andava em baixa, os jovens queriam se livrar das amarras do conservadorismo e a classe trabalhadora tinha as ideologias como mantras. Um ambiente propício para uma ala ultra conservadora e fanática de religiosos tentarem, através da chegada de um falso messias, retomar as rédeas do mundo perdido. E quem paga o pato são as mulheres, desde o orfanato, que recolhe filhas de mães solteiras, o parto dessas mães mostrado com uma terrível desumanização do nascimento com suas ferramentas e sofrimento, a dominação católica das freiras nas inocentes crianças, sempre com o pecado e culpa como mote e a necessidade delas de serem incubadoras do mal.
Todo o elenco está brilhante no filme. Nell Tiger Free, como a irmã Margaret, com suas dúvidas de fé e inocência, faz uma atuação repleta de olhares, expressões corporais, vivendo um pesadelo constante e surpreendente. Sônia Braga, fazendo mais um golaço no exterior, como a cínica Irmã Silvia, que de uma postura angelical acaba se revelando uma maquiavélica e poderosa personagem. Ralph Ineson, como o padre Brennan, que no início do filme já tem uma cena forte, um cartão de visitas e homenagem ao clássico de Richard Donner, também está ótimo na pele do descobridor da conspiração. Nicole Sorace, como a pré-adolescente problema Carlita, também dá um show com olhares profundos e introspecção e Maria Caballero como a “mundana” Luz, é a isca perfeita para Margaret cair nas garras da tentação.
A Primeira Profecia é daqueles filmes que, com duas horas de duração, passam sem termos vontade de piscar. Desde o início, onde literalmente, já racha a cabeça, a cenas como o suicídio de uma freira, atropelamentos, sustos imprevisíveis, diria que até a obrigação das meninas órfãs de rezarem ajoelhadas no pé da cama, com um sinistro Pai Nosso nos alto falantes em uma penumbra iluminada por velas, provoca frio na barriga também. Sem falar no jogo de imagens, esculturas, pinturas, ou como a igreja com seus adereços do passado, ao meu ver, provocava mais medo e escuridão que luz e esperança. Tudo isso numa crueza, criando o terreno para a sinistra revelação e o ardente e poderoso ato final.
A Primeira Profecia já pode ser considerado um dos melhores filmes de terror do ano. Uma produção impecável, com uma direção de alguém que sabia o que fazer e não precisava inventar muito para não estragar o sensacional filme que antecede. Inclusive, algo que faltou no filme de 1976 foi mais detalhes da gestação de Damien, que aqui são facilmente explicados. Um show de Nell Tiger Free, nos apresentando uma das melhores atuações dos gênero de terror em anos, profunda e dramática, se entregando sem moderação para o papel. Um filme de terror com uma visão feminina, onde a opressão se dá na busca da mulher, seu corpo e seu poder de gestação, um objetivo para planos demoníacos. Um novo clássico, resgatando um clássico gigante e uma prova que mesmo utilizando velhas fórmulas ou histórias conhecidas, ainda podemos ter filmes de terror que gerem tensão e arrepio na espinha, e isso A Primeira Profecia causa, e muito!