Crítica: A Paixão Segundo G.H.
Na arte, o impossível é apenas uma palavra na letra i do dicionário. E o que Luiz Fernando Carvalho fez, adaptando o até então impossível de adaptação A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, um dos livros mais introspectivos, viscerais e profundos da nossa literatura, é a prova que o cinema não tem limites. E essa obra de arte visual chega aos cinemas nesta quinta.
G.H. é uma mulher rica dos anos 1960, mora num apartamento do tamanho de um potreiro de frente pro mar num Rio de Janeiro dos sonhos da zona sul. A escultora é privilegiada e com uma vida sem grandes percalços, apenas aparenta indagações pequeno burguesas. Um dia a sua faxineira resolve ir embora e G.H. precisa ir ao quarto da empregada para ver como estão as coisas. Como se fosse uma passagem de um mundo a outro, ao entrar lá vislumbra uma nova realidade, ou como ela mesmo diz: saía do seu mundo, entrando no mundo. G.H. então começa uma viagem interior de pensamentos que podem libertar sua vida do seu casulo particular.
Aquela pergunta básica: como um diretor pode fazer um filme que é um monólogo de duas horas em um tempo tão frenético, onde as imagens são instantâneas, os diálogos são polidos e a ação é uma tônica? Luiz Fernando Carvalho, que já tinha nos dado de presente uma das maiores obras primas do cinema nacional, Lavoura Arcaica (2001), transforma um texto vibrante num jogo de cenas que prende atenção, perturba, causa desconforto, mas termina, junto com a personagem principal, nos libertando. Assistir A Paixão Segundo G.H. é um exercício mais que visual, é sensorial. Mexe com nossa percepção visual, somos obrigados a ouvir, a sentir e a quase incorporar os dramas mundanos e exageradamente supervalorizados da burguesa G.H. O roteiro de Carvalho e de Melina Dalboni, praticamente passam a limpo e traduzem para a sétima arte o livro de Clarice. Mas o grande mérito é não ser apenas um teatro filmado.
A sucessão de imagens, onde o apartamento é um dos personagens, a sutileza de mostrar o belo e o feio, a discrepância social no próprio apartamento, fantasmas perturbadores da cabeça dela e reais, como uma barata que de apenas repugnante passa a ser um monstro assustador, é mérito da incrível fotografia de Paulo Mancini Mikeias. O trabalho de câmeras, onde G.H. é filmada em todos os ângulos possíveis, aliados à trilha sonora um tanto perturbadora, tem o mérito de prender a atenção e fazer o espectador imergir na trama, provocando uma claustrofobia, mas não agoniante, e sim uma prisão artística, da qual não queremos nos libertar. A montagem de Marcio Hashimoto e Nina Galanternick também transforma o monólogo num olhar intenso, conseguindo coesão de imagens deslumbrantes, em nenhum momento a monotonia toma conta, mérito desse trabalho de edição, que a cada passagem nos transporta mais para o eu de G.H.
Mas é claro que o filme é Maria Fernanda Cândido. Ela é o espetáculo. Com uma doação poucas vezes vista no cinema, ela está com uma inspiração luminosa. Com mais de um ano de preparação para essa papel, Maria adentra em G.H., e a cada compasso da evolução do filme, vai se revelando uma nova mulher, muda as expressões, o tom de voz, a intensidade de atuação, um ser dividido na busca intensa pelo desconhecido, mas que recua e entra num desespero de descobrir esse tal mundo. Numa verborragia digna da obra da Clarice, Maria é palavra em movimento, olhares e sentimento. E tem a câmera como observadora, que passeia em pequenos detalhes, como as mãos da atriz no telefone, a raiva de raspar paredes, o TOC constante de deixar os objetos em ordem. Uma das grandes atuações do cinema brasleiro de todos os tempos. Destaque para a outra personagem, a ex-empregada Janair, que aparece apenas como um espectro na mente de G.H., mas a atriz Samira Nancassa, apenas com seu olhar e raras aparições, tem um papel fundamental no desenvolvimento da neura de G.H.
O filme escancara as benéficas influências, desde Ingmar Bergman, as suas mulheres e seus dramas mundanos. Antonioni, apartamento, introspecção interior e a busca por algo inatingível (e por que não David Lynch, na barata kafkiana que atormenta com sua aparência em crescimento constante?). Referências evidentes, mas apenas como norte para a incrível e extremamente pessoal adaptação de Carvalho.
A Paixão Segundo G.H. não é para poucos, pode incomodar uma geração acostumada com o óbvio e a descartabilidade da arte. Serve como uma aula de cinema, onde toda a estrutura fílmica se alia para fazer uma obra, imagem, texto, montagem, direção de arte, som, em uma prova que apenas uma andorinha pode fazer verão nas telas. E se ela for uma Maria Fernanda Cândido, em estado epifânico de atuação, em um texto de uma das maiores autoras da história, integrados a um diretor técnico, perfeccionista e ambicioso, com uma equipe inspirada, vale mais que centenas de figurantes ou pior ainda, um CGI canhestro substituindo todos eles. Poesia visual, feminina e intensa em um dos melhores filmes do cinema nacional em muito tempo, que infelizmente poucos irão ver.