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CRÍTICAS

Crítica – A Melhor Mãe do Mundo

Crítica – A Melhor Mãe do Mundo
  • Publishedjulho 24, 2025

Uma das maiores mazelas, entre inúmeras deste imenso Brasil, ainda é a crença que o poder e o controle sobre uma mulher faz o homem ser mais homem. Isso independente da classe social, raça e religião, pode ser rico, pobre, branco, amarelo, crente ou ateu, ainda existem muitos homens que acabam descontando o fracasso de suas vidas em suas companheiras. Fracasso que se transforma em dominação psicológica, física e violenta num relacionamento. E para piorar, muitas mulheres são presas a essa angustiante tortura de domir com o inimigo. Às vezes, para fugir da opressão do marido, precisa muita coragem pra fugir, denunciar e criar asas para viver, nem que seja por um instante, livre do encosto chamado esposo. Anna Muylaert, na sua obra, nos conta uma jornada de uma mulher, trabalhadora e mãe, que decide se livrar desse cotidiano opressor numa jornada em busca da liberdade. A Melhor Mãe do Mundo (2025) é uma das esperas estreias dos cinemas e nos conta com maestria essa difícil libertação.

No filme conhecemos a papeleira Gal. Mulher preta e batalhadora, sua como nunca separando e reciclando lixo com seu carrinho em cooperativas de São Paulo. Gal é casada com Leandro, que vive abusando fisicamente e psicologicamente da companheira. Gal, um dia, cansada e machucada, resolve tomar uma decisão. Pega seus filhos Rihanna e Benin para deixar para trás essa vida sofrida. Com apenas alguns pertences e o carrinho, a mãe alerta para os filhos que eles farão uma aventura pelas ruas de São Paulo, artifício para deixar os percalços da peregrinação da família, que vai ter que enfrentar noites na rua, ajuda de estranhos, muito trabalho, os perigos da rua, do trânsito de uma imensa metrópole, além da sombra de Leandro, em busca de serem vitoriosos nessa aventura.

Anna Muylaert, uma das melhores diretoras do cinema nacional, está de volta com o tema maternidade, que foi responsável por um dos melhores filmes nacionais da retomada, Que Horas Ela Volta? (2015). Se Regina Casé, no filme de 2015, retratava um relacionamento quase de escravidão, com aquele toque freiriano de boa convivência senhor e vassalo, onde ela, da senzala dos quartos de empregada, criou o filho da patroa, abdicando da filha que veio para libertar a mãe de sua zona de conforto, no seu novo filme, Gal tem que se libertar da prisão do casamento fracassado e abusivo e proteger sua prole, e sem conforto algum, tem que superar as barreiras e perrengues da busca da liberdade. 

Anna que também assina o roteiro com Grace Passô e Mariana Jaspe, dá um tom de fábula às peripécias da família pelas ruas, com aquele ar meio Roberto Benigni de A Vida é Bela, tentando dar um sentido àquelas provações às crianças que tomam banho em chafariz de praças, se amontoam em lixos atrás de latas, ganham comida de boas almas (algumas lobos em forma de cordeiros), sem jamais Gal deixar as crianças sem esperança, usando a metáfora de que irão a Itaquera para ver o jogo do time do coração deles, o Corinthians. 

Fica nítido os ares de realismo da película, com as cenas in loco, naqueles locais que geralmente não ganha ares de pontos turísticos de uma capital como a do filme. Não tem como não comparar com aqueles clássicos neorrealistas italianos dos anos 1940 e 1950, um cinema cru, sem filtro, onde os desprivilegiados matam um leão por dia para sobreviver. Mas mais que um filme que critica a invisibilidade da sociedade aos que fazem o trabalho sujo da roda econômica, carroceiros, carrinheiros e recicladores, A Melhor Mãe do Mundo é um filme sobre maternidade. Gal é uma leoa que não mede esforços para proteger seus dois espertos rebentos, que mesmo desconfiados, apoiam a mãe nessa tal jornada. Gal sofre, vibra, dá risadas, acolhe, não tem medo de pedir, sua muito e literalmente se entrega para que, mesmo naquela insalubre realidade, os filhos durmam com um sorriso no rosto. Como diz a música Maria Maria, para ser essa mulher tem que ter raça, gana e força sempre, e Gal precisou muito de força pra sair de sua zona de desconforto de abusos e humilhações diárias de Leandro para buscar algo melhor pra si e para os filhos. A fotografia do filme, de Lílis Soares, nos dá um retrato fiel dessa realidade, com tomadas aéreas mostra o contraste dos carros com os carrinheiros, em closes frontais mostra a força sobre humana desses trabalhadores braçais e com sua câmera capta toda a humanidade de Gal e seus filhos, explorando os gestos e expressões nos rostos. Um  retrato de uma São Paulo pouco filmada nas telonas, uma cidade de verdade. A trilha sonora também e encantadora e sabe intercalar magistralmente os momentos da fantasia idealizada por Gal para seus filhos, quanto os momentos de tensão da película, ah, e tem um pagode dos bons no churrasco com clássicos de roda de samba!

Gal é interpretada magistralmente por Shirley Cruz, que literalmente se entrega de corpo e alma para o papel. Cumpre o papel de mãe, trabalhadora e mulher com naturalidade, fazendo que o espectador torça e muito pela protagonista, como vibrar pelo time do coração. Seu Jorge também sempre brilhante no pouco tempo que tem em cena. Ele surge no churrasco da família de Gal (em uma das melhores caracterizações de um churrasco de família de periferia que já vi nas telonas) para dar corpo e alma ao canalha Leandro. Que sabe como enganar os outros, mas depois de uns copos vira um incontrolável abusador cheio de lábia e segundas intenções. Mas quem dá brilho ao filme são as duas crianças. Rihanna Barbosa, como a filha mais velha, sempre lúcida e racional, dá um show juntamente com Benin Ayo, com sua espirituosa inocência, são fundamentais para cativar o espectador nas andanças do trio em busca de uma vida melhor.  

Depois do irregular, mas corajoso Clube das Mulheres de Negócios, Anna Muylaert acerta a mão novamente nessa fábula realista e humanista, em que somos expostos à realidade de milhares de brasileiros, que carregam nas costas o fardo de batalhar de maneira desumana atrás do pão pra comer, mas que ao contrário de que muitos privilegiados pensam, são seres humanos de carne, osso e alma. E no caso de Gal e as crianças, tem sonhos, medos, riem, choram e enfrentam além do medo da fome e do relento, o próprio ser humano, às vezes na imagem do desprezo da sociedade ou encarnada no homem abusador, que finge as boas intenções mas que com seu poder de opressor domina. Em suma, uma luta desumana e dupla, mas que no caso do filme, graças à coragem que só uma mãe tem, busca uma saída para essa realidade. E mesmo com todo esse cenário, A Melhor Mãe do Mundo é um filme otimista, que  transforma o enfrentamento às desgraças da vida em um combustível para buscar a felicidade e que se isso é feito em família, com afeto e esperança de que dias melhores virão, às vezes os sonhos se tornam realidade, nem que seja assistirem ao Corinthians, ter um lar ou apenas se verem livres de um encosto que dorme ao lado.

Written By
Lauro Roth