Crítica: Era uma Vez em… Hollywood

Certa vez li uma entrevista do brilhante comediante John Cleese, do grupo Monty Phython, explicando como seria a história do filme “A Vida de Brian”. Ele falava: no início faríamos uma história de um décimo terceiro apóstolo de Cristo que chegaria atrasado em todas as consagradas passagens bíblicas de Jesus, ou seja, não seria testemunha de nada, mas por uma infeliz reviravolta seria crucificado no lugar dele. Enfim, o filme não ficou assim, mas esse exercício de a arte poder mudar, nem que seja ironicamente, a história é um artificio que o Quentin Tarantino gosta de fazer e sabe muito bem como.

No seu novo épico (com quase 3 horas) “Era uma Vez em… Hollywood”, mexe com a história e retrata com maestria um momento. Mais precisamente a Hollywood do ano de 1969. Uma época de transição do cinema. Velhos astros davam lugar a jovens barbudos e cabeludos com ideias revolucionárias e cruas na cabeça, o glamour de outrora começava a desaparecer, a América vivia uma nova era de direitos sociais e parte da juventude já não acreditava mais em mudar o mundo com flores e amor – era o início do fim de um sonho. No filme, Leonardo Di Caprio representa definitivamente essa Hollywood antiga, no papel de Rick Dalton, ator de sucesso nos anos 50 em séries e filmes de western a moda Bonanza, que ainda tenta sobreviver interpretando vilões e foras da lei em séries atuais e é a cara decadente dessa crise e ruptura. Rick vive de aparências e sempre do lado de seu dublê e fiel amigo Cliff Booth (Brad Pitt), quase que um capanga à moda antiga, veterano de guerra com passado sombrio que também não encontra mais espaço nessa nova ordem artística. Rick, por ironia do destino, acaba tendo como vizinho o cultuado diretor polonês Roman Polanski, num auge artístico depois de seu “Dança com Vampiros” e “Bebê de Rosemary” e casado com Sharon Tate uma promissora atriz e sex symbol da época. Toda essa história serve de pano de fundo culminando no famoso caso do verão violento de 1969, quando a família Manson definitivamente sepulta uma era de sonho e cria sementes para uma amarga década de 70.

 

Isso tudo serve de premissa para o Tarantino em quase três horas juntar seu emaranhando de referências cinematográficas e mais uma vez fazer uma declaração aberta de amor ao cinema. Referências a Bruce Lee, Spaghetti Western, Batman e Robin, séries clássicas de TV americanas, Bullit e Steve McQueen, festas e romances estrelares, agentes de cinema, estúdios no auge… Mas ao contrário de outros grandes filmes Era uma vez… é talvez o trabalho mais profundo, digamos maduro do diretor. Leonardo Di Caprio está cada vez melhor, dando um show como o, às vezes, arrogante mas outrora inseguro e arrasado Rick Dalton que custa a entender que seu tempo já passou. Tarantino também dá um show de metalinguagem abusando e explorando o melhor do hoje genial Di Caprio. Brad Pitt consegue passar com um ar cool (claramente inspirado em Steve McQueen) a figura de um perfeito escudeiro sempre a postos da sua majestade pronto pra qualquer parada. O elenco de apoio sempre primoroso dá um toque a mais na película juntando Al Pacino, Kurt Russel e Bruce Dern (que ajudaram a fazer a revolução da nova Hollywood) em papéis menores mas atuados com a maestria de sempre. Margot Robbie está muito bem também com sua doce interpretação à Sharon Tate, mostrando ela uma musa da época sendo uma mulher simples, às vezes inocente e deslumbrada tentando entender o esquema de ser uma estrela.

 

A reconstituição de época está impecável pois somos praticamente transportados à Hollywood de 1969 e como sempre, marca dos filmes do Tarantino, somos embalados por uma trilha sonora perfeita de sucessos passando a limpo a parada daquele ano. Era uma vez… é uma comédia dramática, melancólica, às vezes mostrando um lado cruel do estrelato: que é quando se chega ao fim dele. Uma curiosidade do filme: a carona de Booth a menina  hippie na avenida levando-a ao rancho da família Manson é uma referência à verdadeira carona que Dennis Wilson, baterista dos Beach Boys deu a duas hippies em 1968 e que quase culminou com a entrada de Charles Manson ao show business (ele chegou a gravar diversas músicas com os Beach Boys e Dennis participou de muitas festinhas embalado a sexo, álcool e drogas com as “irmãs” da família). Tarantino nos premia com seu filme mais equilibrado e divertido e que mais uma vez ousa da arte de mudar a história.

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