Aquele que ousou no ballet clássico – “O Corvo Branco”

O ballet clássico é uma arte antiga, capaz de encantador a todos com sua técnica precisa e movimentos que parecem leves. Embora seja associado às mulheres, há muitos homens que fizeram e fazem história nos palcos, um deles foi o russo Rudolf Nureyev.

Nureyev marcou a história do ballet clássico por ter sido o primeiro bailarino soviético a ser tornar um astro no mundo ocidental, além de sua personalidade marcante e dedicação genuína à dança, mas sua vida não foi nada fácil.

História essa que é mostrada no filme “O Corvo Branco”, com roteiro assinado por David Hare, baseado no livro “Rudolf Nureyev: The Life”, da autora Julie Kavanagh, e direção de Ralph Fiennes, que também ajudou a produzir o filme, além de sua participação como ator. O longa está disponível na Prime Video.

Ah, Liam Neeson também está envolvido na produção da obra, mas como Produtor Executivo.

Como conhecer um gênio? Entendendo seu passado, tentando entender a forma como ele pensa a partir de suas experiências pessoais. É por isso que o filme “passeia” entre a infância de Nureyev, sua época Instituto Coreográfico do Estado do Leningrado e a viagem que mudou sua vida, a temporada dessa escola em Paris.

Nureyev nasceu em um trem, porque sua mãe e irmãs moravam em Moscou na época em que a cidade foi evacuada e estavam indo para a cidade de Ufá. Eles viviam em pobreza estrema, mas já ali o garoto se mostrava diferente, vendo o esforço da mãe e ausência do pai (que era soldado, vivia longe de casa).

Certo dia a mãe dele, não se sabe como, conseguiu ingresso para ir ao ballet da cidade, foi nesse momento que o jovem Rudolf encontrou seu propósito de vida. Ele enfrentou todos os obstáculos e começou os estudos no ballet ainda antes dos 10 anos de idade.

Aos 17 anos conseguiu entrar no Instituto Coreográfico do Estado do Leningrado (hoje São Petersburgo), já conhecida na época como Academia Vaganova, uma das maiores referências do mundo do ballet. Lá ele fez questão de ser aluno de Aleksandr Ivánovitch Púchkin, quem se afeiçoou ao aluno futuro bailarino astro, dando não só aulas memoráveis, mas conselhos para a vida artística.

Para que todo o resto faça sentido, esse período de sua vida coincidiu com a escalada da Guerra Fria, que separou o mundo oriental do ocidental, tornando a Rússia a União Soviética, com muitas limitações e delicadas ligações externas. Isso interferiu muito no crescimento profissional de Nureyev.

Isso porque, uma vez formado no Instituto, ele já havia sido notado pelo Bolshoi e outras academias de renome, mas ficava em Moscou e, pelo governo da época, ele precisava ser grato a tudo o que o Leningrado havia o proporcionado, portanto, precisava ficar por lá. Por isso ingressou como solista da Companhia de Balé do Teatro Marínski, ligado à Academia Vaganova.

Não parou por aí!

Já na Companhia, Nureyev participou de uma temporada em Paris, ficaram cerca de seis semanas lá. Ele era muito ligado às artes, dizia que era uma de suas fontes de inspiração, por isso sempre passeava pela capital francesa, especialmente em seus museus, para absorver tudo que podia.

Ele fazia algo semelhante no Leningrado, mas em Paris era diferente, porque estavam em um país adepto ao capitalismo, considerado ocidental, logo o KGB acompanhava todos os passos da Companhia e seus bailarinos.

A marcação foi maior em Nureyev porque ele já tinha fama de ser rebelde (nunca levou desaforo para casa e sabia de todo seu potencial, então não era modesto). Além disso, ele se mostrou muito aberto a fazer amizade com os bailarinos franceses, aliás, com todos que lhe parecessem interessantes em Paris.

Detalhe, ele havia aprendido inglês para poder se comunicar com qualquer pessoa que não fosse russa, isso o fez se aproximar de russos (lógico), franceses e outras muitas pessoas influentes.

Ao final dessa temporada “mágica”, como resultado de seu comportamento tido como atípico e perigoso para o KGB, Nureyev foi detido no aeroporto de Paris, impedido de continuar na turnê europeia da Companhia, ele estava sendo obrigado a voltar para seu país, mas sabia que se voltasse ele seria mais uma vítima do KGB.

Graças as amizades que fez na cidade francesa, ele conseguiu o asilo político e ficou em Paris, fazendo história no mundo e no ballet. Isso porque, a partir daí, ele começou a desenvolver seu trabalho como bailarino e coreográfico, criando ballets referenciados até hoje.

Ele foi avisado no aeroporto, lá em Paris, que nunca mais iria poder pisar em seu país de origem, estava proibido. Ele não só pisou lá de novo, como apresentou seu controverso ballet no palco do Bolshoi!

Detalhe, ele nunca se interessou em política e, aparentemente, sequer falou mal da União Soviética enquanto estava na turnê. Ele só queria viver Paris, a arte e as amizades de lá.

Como uma bailarina amadora e curiosa de história, eu deveria conhecer a história de Nureyev há muito tempo, mas não conhecia, até assistir “O Corvo Branco”. Agradeço a Prime Video e a Ralph Fiennes por isso, porque é uma história muito inspiradora e emocionante.

Alguns pontos me pegaram de jeito, porque fazem todo sentido para a minha o que aprendi “brincando” de bailarina, isso tem a ver com um dos conselhos dado pelo professor Aleksandr Ivánovitch Púchkin, ele fala para o jovem Nureyev que é preciso ter uma história para contar, senão o ballet seria apenas um amontoado de passos perfeitamente técnicos.

Isso incentivou Nureyev a ler tudo que podia, a entender sobre pintura e escultura, um pouco de história, resultando em um bailarino com excelente presença de palco e interpretação perfeita. Sua técnica foi, por diversas vezes, criticada, falavam que seus modos eram até desajeitados, mas quando ele dançava no palco emocionava a todos, porque sua carga emocional transparecia e ele sabia contar aquela história por meio de seus passos.

Outra curiosidade sobre Nureyev é que ele foi o primeiro bailarino clássico a se assumir publicamente gay. No filme isso é só pincelado, mostra apenas que ele teve um relacionamento com outro bailarino, um alemão que sabia falar inglês e o ensinou (era o “professor” dele).

Acho interessante ver histórias assim porque o ballet clássico se tornou famoso por ser algo inacessível, que seus bailarinos mais famosos são pessoas ricas, com muita condição para se dedicar só aquilo. Mas a verdade é que muitos desses que se destacam têm uma história parecida com Nureyev, passaram por poucas e boas para chegar onde chegaram.

E não estou falando de bailarinos internacionais, aqui mesmo no Brasil tem muitos bailarinos e bailarinas com talentos excepcionais que nunca tiveram uma oportunidade, outros que se agarraram a uma oportunidade que pareciam distante e estão lutando pelo seu lugar no palco e nos holofotes.

Ah, antes de falar do elenco, a história do Corvo Branco é explicada muito rapidamente no filme. Nureyev era chamado assim quando criança, porque nunca se enturmou na escola e tinha seu próprio ritmo (não era igual às outras crianças). Mas também pode ser uma referência ao “Lago dos Cisnes” (trocando cisne por corvo).

Quem dar vida ao rebelde, exuberante e nada modesto Rudolf Nureyev (adolescente e adulto) é Oleg Ivenko, um bailarino ucraniano fazendo sua estreia no cinema, com muito louvor. Ivenko é dançarino principal Tatar State Opera, em Kazan.

Detalhe, Kazan é a cidade natal da mãe de Rudolf Nureyev.

O professor Aleksandr Ivánovitch Púchkin, primeiro mentor de Nureyev, é vivido pelo próprio diretor, Ralph Fiennes, que é mais conhecido por seus trabalhos como ator, dentre eles estão “A Lista de Schindler”, “O Grande Hotel Budapest”, “A Duquesa”, “Encontro de Amor” e, lógico, Saga Harry Potter, como Aquele-que-Não-Deve-Ser-Nomeado.

Sim, Voldemort estava ensinando ballet clássico!

À propósito, em um dos conselhos do professor ao aluno ilustre ele fala que o ballet clássico é mágico (até eu, que não sou Potterhead, fui a loucura nesse momento).

O amigo com tem um relacionamento com Nureyev e o ensina inglês, Teja, é vivido pelo ator alemão Louis Hofmann, que ficou bem conhecido no ano passado pela série “Dark”. E sim, ele aparece limpinho no filme.

Outros nomes russos/ucranianos e franceses aparecem no elenco e merecem destaque: Adèle Exarchopoulos, Segei Polunin, Olivier Rabourdin, Raphël Personnaz, Chulpan Khamatova, Zach Avery, dentre outros.

Que possamos valorizar mais a trajetória das pessoas.

Até mais!

Mais do NoSet