Crítica – Livros Restantes
- Publishednovembro 20, 2025
A vida é uma biblioteca construída por lembranças, sejam elas de pessoas, sentimentos, histórias ou lugares. O problema é que, quanto maior a biblioteca, mais robusta precisa ser a estante para aguentar o peso de uma vida inteira. Denise Fraga está se desfazendo da biblioteca de sua vida passada em Livros Restantes (2025), longa escrito e dirigido por Marcia Paraiso.
Ana (Denise Fraga) é uma professora de literatura que está se desfazendo de seus livros antes de se mudar para Portugal. Porém, Ana descobre que não é tão simples dar os últimos cinco livros de sua biblioteca, já que eles possuem dedicatórias de pessoas importantes que passaram pela vida da professora. Por isso, Ana decide devolver cada livro aos autores de cada dedicatória, um processo que acaba se tornando uma reconciliação com o seu passado.
Livros Restantes é um mergulho na intimidade de sua protagonista, através das pessoas que ajudaram a escrever sua história. As complexidades sutis das relações são muito bem traduzidas pelo roteiro de Marcia Paraiso, que vai desnudando os personagens através de linhas de diálogos visceralmente humanos. Nós vamos compreendendo junto com Ana onde cada personagem se encaixa em seu quebra-cabeça de traumas, alegrias e decepções. Cada mágoa escondida atrás de sorrisos, que finalmente explodem em confissões, deixa o público um passo mais próximo de compreender o que levou Ana até aquele ponto em sua própria história.
Livros Restantes consegue ser emocional na medida certa durante o estudo de sua protagonista, e isso se dá porque é um filme muito humano. As inseguranças dos personagens são muito relacionáveis e de fácil assimilação, o que gera uma conexão instantânea entre o público e o longa. O processo pelo qual Ana está passando nos faz refletir sobre como lidar com o fato de que as pessoas podem não ser mais as mesmas hoje do que eram quando elas mudaram nossas vidas. É o caso de uma amiga que mudou tanto de valores, que nem ao menos quer rever Ana para relembrar o passado. Em outros momentos, a mudança ocorreu em Ana, transformando a nostalgia de um romance de verão em apenas vergonha alheia e decepção.
Para consolidar um roteiro já muito bom, temos a atuação de Denise Fraga. Ela constrói uma Ana muito real e palpável, conseguindo ganhar as cenas com reações sutis, com a cadência de sua voz que carrega todo o peso de 50 anos de vida, e com a tradução de um nervosismo não verbalizado. Afinal, a personagem está se colocando em um lugar de vulnerabilidade em relação ao seu passado. Denise Fraga, em sua performance, é ao mesmo tempo maliciosa e inocente; forte e fragilizada. Porque assim é a vida: uma grande esteira de contradições que vão nos construindo e nos carregando para algum lugar.
É importante também destacar como o elenco de coadjuvantes é importante para sustentar a atuação de Denise Fraga, com destaque principalmente para as performances de Augusto Madeira e de Vanderleia Will. As atuações como ex-marido bronco e de mãe durona mas amorosa, respectivamente, dão a base para Denise Fraga poder brilhar na materialização de Ana.
A fotografia aproveita muito bem a beleza natural de Barra da Lagoa, uma comunidade pesqueira em Florianópolis, onde o filme se passa. A natureza serve como uma metáfora visual para os sentimentos internos da personagem. Em alguns momentos, até com uma certa obviedade, quando há uma conversa alegre debaixo de um sol, nas areias da praia, enquanto uma conversa difícil ocorre debaixo de uma chuva torrencial. Mas até nesse ponto, o filme se sustenta bem, conforme vamos nos aprofundando nas camadas, afinal, a percepção é diferente dependendo do contexto: a chuva na janela de um carro parado em um estacionamento não transmite a mesma sensação da chuva vista de uma sacada, regada a espumante, na companhia de um amor de longa data. A mesma coisa acontece com conversas fáceis que podem se tornar difíceis no contexto errado e vice-versa.
O trunfo de Livros Restantes é entender essa complexidade de sentimentos, situações e relações, construindo uma experiência cinematográfica humana e envolvente. Acompanhar Ana se despedindo de seu passado nos ajuda a tirar um pouco do peso da nossa própria biblioteca de vida.