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CRÍTICAS

Crítica – O Agente Secreto

Crítica – O Agente Secreto
  • Publishednovembro 2, 2025

No carnaval de 1977, em uma deserta estrada de Pernambuco, um frentista obrigado a fazer plantão naquele fim de mundo em plena festa de fevereiro, observa um fusca amarelo chegando. O carro para, e ali um homem com algumas malas e de poucas palavras pede para encher o tanque, afinal está faz muito tempo rodando. Ele observa ao longe um corpo. Tapado com alguns papelões, cercado de moscas e às vezes por cachorros, tem um cadáver atirado ao lado do local. O forasteiro indaga o frentista sobre quem é aquele corpo estendido no chão. Ele responde que é um meliante que tentou assaltá-los e um colega foi mais rápido e matou o cabra. O forasteiro pergunta ainda por que a polícia não vem buscar o corpo e o frentista diz que devido ao feriado eles tem mais com o que se preocupar. 

Para surpresa dos dois, uma viatura chega no local. Os dois policiais param o carro, fazem pouco caso para o cadáver e cercam o forasteiro. Pedem os documentos, averiguam a situação do carro e fazem uma revista no fusca. O policial pergunta se ele não tem tóxico, na recusa, os dois, sendo que o cidadão está limpo, ainda dão aquele achaque clássico, pedindo uns trocos pra caixinha e carnaval dos policiais. O rapaz não tem grana, afinal encheu o tanque, mas acaba dando a carteira de cigarros pra dupla, que simplesmente entra no carro e se manda, não dando bola para o corpo. Marcelo, que era o nome do dono fusca, fica pasmo, mas segue seu rumo também e o frentista, mesmo reclamando do forte odor, volta pra casinha do posto, e o corpo apodrece na sarjeta, para alegria dos cachorros e insetos. 

Só por essa cena (que era para ter sido um curta, nunca filmado), o filme O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, consegue pintar, em alguns minutos, toda a situação do Brasil nos anos 1970. Tensão, indiferença, controle, morte, corrupção policial e a sensação de que nada estava acontecendo de diferente, pois a vida segue, afinal é carnaval, estão ali, naqueles fascinantes minutos iniciais dessa obra-prima que é o premiado (e possível candidato a mais prêmios) novo filme do diretor pernambucano, que tem estreia oficial no Brasil nesta quinta-feira.

A sinopse do filme nos apresenta a história de Marcelo. O dono do fusca amarelo que tomou o ataque dos policiais no início do filme é um professor universitário com um passado nebuloso que volta para Recife, sua terra Natal, a fim de rever seu filho. Mas como não pode seguir uma vida normal, acaba buscando guarida num prédio na capital pernambucana onde Dona Sebastiana acolhe pessoas que são perseguidas pelo regime ou refugiados. Lá encontra uma rede de apoio que dá apoio para ele tentar uma nova vida. Mas Recife não é um lugar muito seguro no ano de 1977. Fora as mortes em consequência de um carnaval violento, ele vê uma cidade em constante vigilância, com uma polícia corrupta, que manda e desmanda e some com pessoas através do medo e do poder. E para piorar, dois matadores vindos do Sul, a mando de um poderoso industrial, estão prontos para dar fim à vida do professor, que corre contra o tempo para salvar a sua pele. 

Quem assistiu o filme anterior de Kleber Mendonça Filho e se encantou com a forma documental como lembrou os cinemas que fizeram parte da sua formação, o Cinema São Luís, principalmente, e uma Recife que não existe mais, não sabia que através daqueles depoimentos, jornais antigos e preservação da memória, estava o material de pesquisa para a concretização do seu novo longa. Só mesmo quem colocou a mão na massa com essa pesquisa que já tinha nos dado um excelente filme que nos transportava para uma Recife do passado, teria o poder de nos apresentar esse encantador O Agente Secreto. São tantos os méritos do filme que é bom analisar por partes. Prefiro comecar elogiando a detalhista direção de arte e figurinos do filme. Thales Junqueira e Rita Azevedo Gomes não deixam passar nada. Reconstroem com detalhes minuciosos aqueles dias em Recife do verão de 1977. Desde as latas de cerveja, as cores das camisetas, as músicas que tocavam na época, os móveis das repartições públicas e delegacias ou detalhes peculiares reconstituídos sem retoques. Nada está fora do lugar ou passa fora do crivo da dupla, que nos transporta para uma máquina no tempo de uma tensa e caótica capital pernambucana que constratava com um povo sofrido, mas cheio de vida e alegria.  Adicione isso a uma fotografia com filtros setentistas e com cores realistas de Evgenia Alexandrova, para captar com maestria todo aquele ambiente, temos um filme que é de uma beleza visual impactante. Com uma parte técnica apurada e sem grandes invencionices, o jogo está quase ganho, mas some-se a isso um roteiro inventivo e cheio de reviravoltas de Kleber Mendonça. 

Recheado por referências cinematográficas, com alusão a filmes da época como A Profecia, King Kong e Tubarão, além de ter o próprio Cinema São Luiz como um personagem principal da trama, afinal o cinema era uma válvula de escape para aqueles dias pesados, e no filme, serve como palco decisivo para o desenvolvimento da trama. Não falta tensão, telefonemas, cartas, códigos, mensagens secretas, infiltrados, elementos chave dos melhores filmes de espionagem do gênero. Ação de tirar o fôlego nas ruas de Recife de 1977, sem poupar o espectador de violência explícita e realista da polícia dos anos 1970. Se passa em Pernambuco, mas poderia ser em qualquer estado brasileiro. Com as costas quentes pelo regime militar, abusava do poder, com corrupção e morte, não tendo escrúpulos para liquidar os desafetos e a bandidagem e apenas desovar os corpos sem dó (qualquer semelhança com o Brasil de 2025 não é mera coincidência).

E o roteiro também é muito feliz ao falar sobre a influência do capital privado no regime. Como sempre repito, a ditadura era cívico-militar e muitos poderosos empresários ganhavam dinheiro fácil com ajuda do governo e muitas vezes com métodos escusos e violentos para alcançar suas metas.

O Agente Secreto consegue ser político sem ser panfletário. Vejo uma semelhança com O Segredo dos Seus Olhos, do argentino Juan José Campanella. A ditadura era apenas um cenário para dramas pessoais de gente que às vezes não tinha envolvimento na guerra suja, mas acabava sofrendo as consequências de um estado de exceção corrupto e desumano. 

Sem falar no realismo fantástico que o diretor e roteirista insere na sua trama, com lendas urbanas da Recife urbana envolvendo tubarões, pernas que ganhavam vida e um gato com duas faces, que servem para incrementar ainda mais a fascinante e envolvente trama.

O filme também explora temas como a resistência hercúlea de cidadãos comuns vendo sua vida virar de ponta cabeça e tendo que buscar formas para enfrentar o estado repressivo. Uma intensa luta pela identidade, tentar viver de maneira digna em meio àquele furacão e constante vigilância, também uma ode à preservação da memória. Fazendo um retrato de sua cidade nos idos dos 1970, faz uma homenagem a todos aqueles, na maioria anônimos, que vivenciaram aqueles dias turbulentos, e como diz o cartaz, cheio de pirraça que foi aquele ano, dois anos antes da tão esperada anistia.

A escolha do elenco e a construção dos personagens também são peças essenciais no sucesso do filme. Todos os personagens, e não são poucos, têm uma função decisiva na trama, com vida própria, sendo peças de encaixe para o intrincado quebra-cabeças do filme. Uma direção de elenco que criou gente como a gente, pessoas com a cara da época. Destaque para Carlos Francisco, Seu Alexander, o sogro de Marcelo, projecionista do cinema, que no meio de tanta fantasia, se vê a frente de uma dura realidade. Roney Villela como o matador Augusto e Robério Diógenes como o delegado falcatrua, estão geniais passando um retrato fiel da estampa perfeita daqueles tipos perigosos e folclóricos que pipocaram na época. Gabriel Leone está discreto como Bob, o matador companheiro de Sígnios, mas é com Tania Maria, como Dona Sebastiana, que o filme ganha vida. Além de ser uma válvula de escape cômica, a atriz veterana, mesmo verborrágica, encanta com suas tiradas e conselhos sábios de quem sabe o que está fazendo, na perigosa missão de acolher tanta gente perseguida. Uma atuação verdadeira e robusta que rouba o filme por alguns momentos. Mas Cannes que diga não, né? Wagner Moura está impecável como Marcelo – Armando, com o ator sabendo diferenciar o passado do ex-professor universitário idealista com o traumatizado e amedrontado Marcelo, sua nova alcunha, que apenas quer se ver livre das ameaças e proteger seu filho e sua vida. Temos praticamente várias facetas de Wagner Moura no filme, com cada uma o ator usando tintas durante sua intensa interpretação, que se tudo der certo vai concorrer ao Oscar.

O Agente Secreto é a prova viva do que pode ser feito no Brasil com um combo completo. Pitadas de memória, história do Brasil, recente crítica social, suspense eletrizante e violência crua. Regar isso a um minucioso trabalho visual e parte técnica impecável, doses de humor, fantasia e muita originalidade, numa história universal que qualquer pessoa que gosta de cinema no mundo pode se interessar e admirar. Um filme acessível e que jamais abdica da qualidade. Um filme que, por mais que tenha toda essa gama de nuances e estratos, têm como crítica gritante a falta de memória e como histórias de vida fascinantes são esquecidas e descartadas com o tempo. Tanto pelo estado, que para ele às vezes o cidadão é apenas um número e se esquece da grandeza da história de suas cidades e reminiscências em prol do progresso, e principalmente, até mesmo pelos familiares, que com o tempo, descartam como um simples arquivo deletado de um celular riquíssimas e épicas passagens de seus antecessores, ainda mais em um tempo em que, para muitos, o velho já pode ser considerado os minutos que recém passaram. Ou como o corpo atirado no chão no início do filme, uma  trajetória de vida interrompida que se torna algo que ninguém mais se importa, por medo, ignorância, indiferença ou total desprezo.

Written By
Lauro Roth