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CRÍTICAS

Crítica – Springsteen – Salve-me do Desconhecido

Crítica – Springsteen – Salve-me do Desconhecido
  • Publishedoutubro 27, 2025

Em umas das faixas musicais do antológico disco Nebraska, do Bruce Springsteen, de 1982, na canção State Trooper, o cantor, em tom de desabafo ao narrar uma batida policial, evoca os versos “Senhor policial, por favor, não me pare, por favor, não me pare, por favor, não me pare, talvez você tenha um filho, talvez você tenha uma bela esposa, a única coisa que eu tenho vem me incomodando a vida toda”. Essa lamúria representa bem a vida do cantor entre 1981 e 1982, transformado em super astro, mas sempre em conflitos com seus fantasmas pessoais e dificuldade de se entregar aos sentimentos. E esse recorte de sua vida dá vida ao longa Springsteen – Salve-me do Desconhecido (Deliver me from Nowhere, 2025), título em inglês retirado de trecho da  canção citada acima e com direção de Scott Cooper.

O filme conta uma passagem da vida de Springsteen, que ao encerrar a The River Tour com com mais de 140 shows em dois anos, o que transformou Bruce num estrelar artista, sua vida pessoal estava de pernas pro ar. Com dificuldade de enfrentar a fama, incapacidade de amar e com necessidade de sair de cena por algum tempo, ele se trancou num quarto de sua casa com um gravador de quatro canais e apenas com sua voz, violão e harmônica fez um dos seus maiores discos. Externando seus problemas pessoais através da música, com composições que mais uma vez servem como porta-vozes dos esquecidos da América, Bruce tem que enfrentar a incredulidade dos tubarões das gravadoras que não entendem como ele pode querer fazer um disco tão sombrio e intimista mesmo com o estrelato que conquistou. Em paralelo, na sua casa de New Jersey, ele relembra da sua infância, seus problemas com o pai violento e a mãe sofredora. Tem como aliados a cumplicidade e o apoio de seu produtor Jon Landau na sua empreitada contra a depressão e a dificuldade de se entregar ao amor, que são combustíveis para dar vida ao antológico álbum Nebraska.

De antemão já vou avisando: Springsteen – Salve-me do Desconhecido não é um filme indicado para quem não conhece o Bruce “The Boss”. O roteiro, do próprio Scott Cooper, para o livro Deliver from Nowhere, de Warren Zanes, adapta com maestria aqueles dias da vida do cantor na concepção do seu álbum menos pirotécnico. Talvez pela ausência de hits e passagens mais populares da carreira do artista, muita gente que já o conhece pouco, poderá achar entediante aquele mar de solidão, angústia e traumas familiares mal resolvidos. Diferente da maioria dos filmes de cinebiografias, o filme evita usar artifícios como diversas passagens de shows eletrizantes e músicas aos borbotões, como videoclipes para empolgar o espectador, e com algumas poucas exceções, se concentra exatamente no álbum em questão, nas inspirações, no momento delicado da vida dele, com muita introspecção e pouco didatismo. Usando flashbacks que mostram sua conflituosa relação com o pai, um alcoólatra agressivo que abusava da mãe, uma fotografia sombria do cenário onde ele se fechou pro mundo para gravar o disco, o quarto de sua casa em New Jersey, além de uma refinada reconstituição do início dos anos 1980, de quebra o começo da Era Reagan, mote perfeito para as composições em prol dos trabalhadores da América tão lesados com a os mandatos neoliberais do ex-ator e na época presidente.

A melancolia do artista, que mesmo com todos os holofotes não consegue se resolver, sua obsessão pelo filme Badlands (1973), que conta a história de um serial killer dos anos 1950, as letras banda Suicide e o retrato da América sombria da época se misturavam a sua depressão e angústia. Um homem de 30 anos, com cansaço físico e mental tenta juntar os cacos de sua vida atual com as reminiscências do passado, gerando poesia e música. O problema maior do filme, ao menos no Brasil, é que o Bruce Springsteen nunca teve a fama devida, é apenas conhecido pela grande massa muito pelo seu trabalho posterior, o mega sucesso Born in Usa e pelo tema do filme Philadelfia. O disco Nebraska, apesar do sucesso, passou batido por aqui. E mesmo com sutis pistas, em formas de imagens em preto e branco do passado e uma solidão, mesmo com a multidão ao seu lado, o filme aprofunda pouco os motivos da sua depressão, trata de uma maneira muito apressada os fantasmas nos olhos do artista e a viagem ao âmago da alma do Bruce acaba ficando mal resolvida. Além de a escolha por mostrar um artista permeado por fragilidades, problemas existenciais e bloqueios afetivos, pode, para quem não conhece o tamanho da importância do Bruce, se afastar ainda mais de sua obra. 

Jeremy Allen White pode até não ter tanta semelhança com Springsteen, mas compensa com uma atuação cheia de maneirismos, gestos e trejeitos. Não deixa a desejar e sabe transmitir em olhares e atitudes o delicado momento afogado de depressão e aflição do famoso cantor no início da década de 1980. Jeremy Strong está ótimo como sempre, na pele de Jon Landau, o produtor e arquiteto da carreira do Bruce, que trabalhou com ele entre 1976 e 1992. É incrível a capacidade do ator de se entregar a diversos personagens de maneira precisa, ainda que propositalmente contida, afinal o drama principal  era do perturbado astro. E como o Landau abraçou o momento do seu chefe, com paciência e apoio é digno de nota. Incrível pensar que um astro amado pelos Estados Unidos simplesmente largou tudo pra fazer um disco intimista, mal gravado e acústico, sem ele na capa e mesmo assim, meio que a contragosto, é claro, a gravadora lançou e fez um tremendo sucesso. Hoje em dia artista algum teria essa liberdade e gravadora alguma teria espaço para apostas perigosas.

Springsteen – Salve-me do Desconhecido é um filme sob medida para quem tem apreço pela obra do compositor de New Jersey. Um filme com poucas concessões, sombrio, denso e muitas vezes angustiante. Um clima pesado que pode afugentar quem pouco conhece da riquíssima obra do artista, irá agradar os fãs e principalmente seu público dos Estados Unidos e para quem realmente gosta da carreira do artista. Passa longe (e não era a proposta) de pincelar em tintas fortes a relevância do The Boss, preferindo mostrar suas fragilidades e questões pessoais mal resolvidas, que foram a força motriz para criação de uma obra fundamental na sua carreira. Mas que mesmo explorando todo esse lado humano do artista, acaba não sanando nossas dúvidas e conhecemos pouco sobre a sua essência. E questionando o trecho da música dele que dá título ao filme: ao invés de nos entregar ao desconhecido e sua cerne, a maioria vai acabar tratando o artista como um mero e problemático desconhecido.

Written By
Lauro Roth