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CRÍTICAS

Crítica – Os Enforcados

Crítica – Os Enforcados
  • Publishedagosto 12, 2025

Qualquer cenário é possível para emular Macbeth, de Shakespeare. A história do general que mata o rei Duncan, por causa de um profecia que indica que ele seria o rei da Escócia, e que é manipulado diariamente por sua esposa Lady Macbeth, incentivadora das loucuras e tramoias do general, já serviu de pano para manga para muitos filmes e peças inspirados na tragédia recheada de desconfianças, violência e culpa. Transferir esse universo de traição, ambição e sangue para o jogo do bicho no Rio de Janeiro, foi o que fez o diretor Fernando Coimbra, no seu novo filme Os Enforcados (2025), uma das estreias desta quinta-feira nos cinemas.

Valério é um bicheiro frustrado que sempre que quer agradar a esposa Regina, vive em volta de uma interminável reforma na mansão em que vivem. Uma das causas da demora da conclusão é a falta de dinheiro. Regina, motivada por uma carta de tarô que cobra a falta ambição da parte deles, cutuca o marido, levantando suspeitas de que seu tio, além de ter matado o pai dele, está ficando com muito mais grana. Os dois então tem o plano “perfeito”, que é matar o tio. Mas as coisas começam a dar errado, e numa espiral de violência, o casal começa a desconfiar de tudo e todos, eliminando desafetos, rompendo com aliados e vivendo uma loucura e paranoia sem fim.

Fernando Coimbra está de volta, 11 anos depois do ótimo O Lobo Atrás da Porta (2014), numa versão com pitadas de Shakespeare, mas genuinamente carioca. Nada mais a cara do Brasil que o bom e velho jogo do bicho e seus chefes de ponto folclóricos e violentos, em uma história que é cheia de reviravoltas e puro suco de um Rio Janeiro idealizado. O próprio jogo do bicho, uma contravenção tratada como inocente, família, carnaval, novos ricos e bicheiros folclóricos, estão todos ali naquele ambiente de paranoia e ambição descontrolada de Regina e Irandir. O casal quer passar uma imagem de uma elite vencedora, respeitada, com experiência de vida no exterior, mas não passam de herdeiros de um sistema de corrupção, envolvendo a contravenção, violência e política, quase que cidadãos de bem, no mais pejorativo sentido da palavra, atolados de dívidas e vivendo de aparências, podem fazer qualquer coisa para se manter no salto alto. 

O diretor, com experiência em produções internacionais recentes como Narcos e Sand Castle, sabe conduzir bem toda essa paranoia, recheada de sangue, reviravolta e vingança, abusando da melhor maneira dos clichês básicos de filmes policiais brasileiros e de como o cinema nacional retrata a violência urbana. O estereótipo do mafioso bicheiro, muita violência visual exposta com maestria, mas é nos diálogos que o filme ganha o espectador. Frases bem utilizadas, pitacos afiados, bom humor e absurdo de situações fazem de Os Enforcados quase uma comédia de erros, provocados pelo delírio do casal, que desconfia (sabiamente) até do cachorro e das paredes da casa.

Leandra Leal está incrível como Regina. Numa perua decadente e sem norte, serve como voz manipuladora ao maleável marido, desconfia de tudo e todos e é sempre destaque com frases ótimas e marcantes numa atuação extraordinária. Irandhir Santos, se não tem o brilho de Leandra, não decepciona como o Macbeth do jogo do bicho, mandado e manobrado por Regina, não poupando balas e mortes para alavancar sua carreira e satisfazer sua esposa. Stepan Nercessian, brilhante como sempre, como o tio que é a encarnação perfeita do bicheiro clássico, respeitado pelo seu povo, envolvido na política como deputado, boa vida, sempre recheada por luxo, padrinho de escola de samba, exaltando seu poder. Irene Ravache também está divertidíssima como a mãe e cartomante de Regina, se a filha passa o tempo inteiro cheia de dúvidas e querendo dominar o marido, a mãe discretamente é quem assopra sutilmente todas essas dúvidas crueis e capitais da mente de Regina. Mas quem brilha também é a casa do casal. No alto de um morro, com vista privilegiada para o mar, ela é testemunha das agruras e tramoias de Regina e Valério. Em constante reforma, com pedreiros transitando, suas paredes, rebocos e tubulações parece que observam tudo. E ao mesmo tempo, além de ser o sonho da ascensão social da Regina, a casa e seus segredos geram constantes preocupações na sua lesada cabeça. Uma personagem importantíssima na construção da trama, servindo como cenário para os mais paranoicos pensamentos do casal.

A mistura de Macbeth, com Hamlet (a dúvida se o tio de Valério matou seu pai), com pitadas de policial brasileiro, crítica à elite tacanha do país, disposta a tudo pelo status, e o retrato convencional dos bicheiros, fazem de Os Enforcados uma excelente diversão, até porque no meio de tantas reviravoltas, crueldade e mortes, o humor transita fácil, ajudando a digerirmos o teatro do absurdo da tragédia carioca com ares shakespearianos de Regina e Valério.

Written By
Lauro Roth