Crítica: Ainda Estou Aqui
Talvez, maior que o sentimento de perder um ente querido, é a impotência de jamais saber o paradeiro dele. Um parente desaparecido, apesar de alimentar ilusões de uma desejada volta, provoca um vazio sem precedentes, causando uma tortura na alma. E como diria Chico, naquele tempo de páginas infelizes de nossa história, a ditadura civil militar (1964-1985), além de ter matado, perseguido e torturado muita gente, sumiu com muitos cidadãos, gerando esse senso de incapacidade de quem ficou de enterrarem seus mortos, numa eterna prisão. Esse sentimento foi que Eunice e seus cinco filhos passaram por décadas da vida atrás de respostas, sobre o paradeiro de Rubens Paiva, ex-deputado e engenheiro, que a ditadura levou, numa manhã de verão de 1971. E essa história que Walter Salles leva às telonas, no aguardado Ainda Estou Aqui (2024), com estreia nacional nesta semana.
Rubens Paiva, ex-deputado cassado, depois que voltou ao Brasil, largou a política e passou a cuidar da família e de sua profissão. Com cinco filhos, quatro meninas e um menino, casado com Eunice, volta à engenharia e mora num lindo sobrado de frente pro mar do Leblon. Um pequeno burguês que vive alegre com sua linda família, bom uísque e reuniões de amigos. Além de planos de construir uma casa própria num terreno comprado por ele. Até que em uma manhã ensolarada de janeiro de 1971, alguns homens batem em sua porta e pedem para levá-lo para ser interrogado. Rubens se veste calmamente e dá um último adeus a sua família, crente que à noite estaria jantando com eles. Eunice e uma das filhas, de 15 anos, são levadas no dia seguinte. E passam por torturas psicológicas. A menina logo é solta e a mãe passa alguns dias numa cela, e ao voltar, tem sua vida mudada para sempre, com as mãos atadas com o sumiço do marido, tendo cinco filhos para criar, começando ali uma incansável luta para saber o que aconteceu com Rubens Paiva.
A luta de Eunice em busca do paradeiro do marido já tinha sido citada no best-seller Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva (que tinha 13 anos quando teve o pai desaparecido) e teve uma adaptação razoável para o cinema em 1987 com direção de Roberto Gervitz. Eunice é mais uma entre Marias, Clarices, Sônias, Elizabeths, entre outras, que tiveram suas famílias dilaceradas por um regime autoritário que via na repressão e no ódio uma maneira de governar o país. Walter Salles nos apresenta um filme, sem sombra de dúvidas, impecável ao retratar esse recorte da história do Brasil.
Com direção como sempre no capricho de Waltinho, reconstituição de época rica em detalhes e uma trilha sonora original de Warren Ellis casada com sucessos da época, somos literalmente transportados para o melhor e o pior de 1971. Mesmo com um roteiro sem grandes novidades na construção da história, ainda assim temos uma brilhante adaptação da obra autobiográfica do Marcelo Rubens Paiva, por Murilo Hauser e Heitor Lorega. Didático, mas não simplista, e extremamente acessível para qualquer pessoa, que mesmo sabendo pouco daquele momento, conseguiria se emocionar com a história de Eunice e sua família. Um drama atemporal, sensível, um filme além de político, humanista, em que uma família, mesmo dilacerada pela dúvida da perda, não abandona as esperanças, a integridade e se fortalece muito mais que se abala. Ou, como numa cena em que ao pedirem uma foto da família para uma matéria de revista, o fotógrafo pede para que fiquem sérios, mas Eunice pede para os filhos sorrirem, numa prova que a ternura jamais pode ser perdida. Inclusive, as fotos no filme são elos importantes para perpetuar as memórias de um tempo em que os Paiva esbanjam brilho e vida, amuletos sagrados de imagens que nenhum canhão ou bala podem aniquilar.
Mas o grande gol de placa de Walter Salles é que Ainda Estou Aqui é mais que um filme panfletário ou político. Por mais que o horror das atrocidades militares esteja todo ali explícito, sem concessões, é que o que conduz a trama é a família. Eunice é obrigada a sair de sua vida de conforto, casa no Leblon, com empregada doméstica, dona de casa e profissão mãe, tem que juntar os cacos e retomar a vida em São Paulo, se formando com 48 anos em Direito e passando o resto da vida lutando por questões envolvendo os direitos humanos. Um filme sobre uma mulher que mata no peito e precisa buscar forças para recomeçar e jamais perder a esperança. Talvez o que faça o Oscar ver com carinho o filme, além do lobby e dinheiro envolvido, é essa força de uma história que possa agradar ao mundo inteiro, com todas as peças fundamentais: Filme político acessível, em um momento histórico brilhantemente construído, um drama familiar, uma ruptura e a luta solitária, regada à coragem para enfrentar a tal nova realidade.
A fotografia inspirada de Adrian Tejido também é um show à parte. Da ensolarada parte inicial do filme, com cores, praia e muita imagem em super 8, nos vídeos familiares, a penumbra e as sombras dos calabouços dos milicos (que nunca são tratados de forma caricatural ou como demônios sem cauda) e até o tom anos 1990 da parte final em São Paulo, tudo pontuando com esmero os três atos do filme. Mas como há 34 anos, Walter Salles contou com uma iluminada Fernanda Montenegro em Central do Brasil, em Ainda Estou Aqui, temos a sua filha, Fernanda Torres, tomando as rédeas do filme, mostrando a metamorfose de Eunice daquela apaixonada esposa e matriarca, virando a cascuda mulher que jamais se deixa cair no desespero, mantendo a cabeça no lugar. Uma atuação elegante, sem exageros e maneirismos, com olhares e expressões que vão mudando conforme o furacão vai varrendo sua vida. Cedo para pleitear um Oscar, mas é uma atuação sensível e inebriante. Falando em Fernanda Montenegro, ela faz uma Eunice já na terceira idade e com grau avançado de Alzheimer, mas que com apenas olhares e suas expressões serenas, já valem a ponta. Selton Mello está bem como Rubens Paiva, o paizão dedicado, chefe de uma família perfeita, mas o filme mesmo é de Fernanda.Ainda Estou Aqui tem todos os ingredientes que a Academia do Oscar adora, mas independente de expectativa de premiação, Walter Salles mais uma vez nos premia com um filme sensível, direto e vigoroso, retratando com maestria um período que jamais deve ser esquecido. Um filme para qualquer público, em que uma luta humanista por justiça e esperança tem feições femininas. O rosto e a coragem de Eunice. Daqueles filmes que podem ilustrar aulas de história e mostrar para aqueles que dizem “bom era nos tempos da ditadura”, um deboche a tanta gente que perdeu tanto naqueles tempos…