O Beijo no Asfalto: obra-prima e uma aula de cinema e teatro.

O Beijo no Asfalto é um clássico de nosso teatro. Escrita pelo imortal Nelson Rodrigues, a obra conta com a direção de Murilo Benício e tem uma estética totalmente diferente de tudo aquilo que já foi feito em relação à obra. Entrelaçando cenas de cinema, leituras de texto, bastidores, tomadas aéreas, opiniões e lembranças do elenco, visão da coxia e a própria visão do diretor, essa produção do cinema nacional já se consagra com uma obra-prima e, sobretudo, uma aula de cinema e teatro.

Roteiro.

A história segue aquilo que Nelson Rodrigues idealizou. Ambientada em um Rio de Janeiro antigo dos idos anos de 1960, a trama engloba tudo o que a sociedade da época encarava como normal e que hoje impacta o espectador.

A base da trama está no escândalo produzido por Amado Ribeiro (Otávio Müller) um repórter sem caráter que presencia um beijo dado em um homem após ele ser atropelado. Ao enxergar a possibilidade de venda de jornais (algo que hoje cai em desuso, pois a mídia eletrônica está matando os jornais impressos), Amado procura o policial Cunha (Augusto Madeira), um homem sem escrúpulos e preconceituoso cujo prazer está em exercer sua autoridade.

No meio desse escândalo são envolvidos o próprio homem que deu o beijo no moribundo, o recém-casado Arandir (Lázaro Ramos), sua esposa Selminha (Débora Falabella), o pai dela e sogro de Arandir, Aprígio (Stênio Garcia), a irmã de Selminha, a bela Dália (Luiza Tiso) e a mulher que põe lenha na fogueira com seus comentários maliciosos, a velha e fofoqueira Dona Matilde (Fernanda Montenegro).

Como não poderia deixar de ser, a história de Nelson ganha ares de tragédia e não poupa o espectador de uma realidade nua, crua e cruel, assim como a vida também o é.

Apesar de ser uma história de “época”, O Beijo no Asfalto é uma obra atemporal e interessante para os públicos de todas as gerações.

Filme de época?

Com base no roteiro, provavelmente esse seria um filme ambientado na década de 1960, mas é possível ver ônibus e locações atuais. Isso não diminuiu o impacto da história ou a situou em nosso tempo atual. Na verdade, Murilo se valeu do recurso das cenas em preto & branco para dar um ar mais nostálgico ao longa-metragem. Mesmo com a mistura de ambientes e pessoas dos dias de hoje aos cenários que mostram um Rio de Janeiro antigo (além do figurino), temos a nítida impressão de que o filme é de época… mas com um dos conteúdos mais atuais que já vi em um filme brasileiro.

Outro fato interessantíssimo está na variação de cenas para o cinema com tomadas para teatro e as conversas dos atores (a passagem de texto). Mesmo ao oscilar entre todas essas linguagens, jamais o público perde o foco da narrativa e daquilo que está acontecendo na obra de Nelson.

Edição.

Esse é o ponto que transforma um filme comum em uma obra de arte. A equipe de Murilo Benício foi de uma competência extrema ao conseguir separar e organizar horas de conversas e cenas propriamente ditas do filme para, no fim, transformar naquilo que o público verá no cinema.

A interligação de cenas, os cortes, a inclusão de bastidores e a direção impecável são elementos usados de forma perfeita para obter um resultado memorável aos que assistirão o longa.

Interpretações.

Tudo está maravilhoso. O elenco é de uma competência ímpar. Ao mixar a teatralidade ao cinema, apoiado pelos talentos dos atores, temos um resultado impressionante. Stênio é um pai amoroso e nós acreditamos nisso. Débora e Luiza mostram o quanto pode ser belo e complexo o relacionamento entre irmãs. Lázaro Ramos é o oprimido, a vítima de uma notícia falsa (as famigeradas Fake News de hoje) que vê sua vida desmoronar. Otávio Müller dá voz e corpo a um pilantra de alto nível e ações baixas. Augusto Madeira é a encarnação do abuso de poder. Fernanda Montenegro tem um papel relativamente pequeno, mas seu talento e suas memórias são um dos pontos altos da obra.

Essas interpretações são fortes e marcantes, mas ganham ainda mais pertinência com a fotografia do icônico Walter Carvalho e a montagem perfeita de Pablo Ribeiro.

Mentiras.

A peça de Nelson Rodrigues é tomada de mentiras. A trama evolui para revelações inacreditáveis que pegam o público de surpresa. A rede de mentiras é tão grande que alguns dos personagens começam até a desconfiar de suas versões da história.

Tal como acontece hoje, a história mostra que uma mentira elaborada acaba se transformando em verdade para os que não viveram o fato. Os estragos das Fake News é o ponto-chave de O Beijo no Asfalto, entremeado pela discussão sobre a provável homossexualidade de um homem casado.

Nada é o que parece ser quando se trata de uma obra de Nelson.

Versões anteriores.

Além da montagem teatral de 1960, o cinema já teve duas versões da história escrita por Nelson Rodrigues anteriores a essa nova produção. Em 1964 foi lançado O Beijo, cujo elenco contava com os talentos de Reginaldo Faria, Norma Blum, Jorge Dória, Flávio Tambellini e Xandó Batista. Posteriormente, no ano de 1984, outra versão surge para os cinemas com a direção de Bruno Barreto e no elenco nomes como Christiane Torloni, Tarcísio Meira, Ney Latorraca, Oswaldo Loureiro, Daniel Filho, Caio Brossa e Lídia Brondi.

A primeira montagem teatral contou com a presença de Fernanda Montenegro no papel da jovem esposa Selminha; isso é apontado pela própria atriz durante as passagens de texto presentes nessa nova versão de O Beijo no Asfalto.

A peça também teve uma versão para os quadrinhos lançada pela editora Nova Fronteira.

Enfim, com base em tudo que está exposto aqui, acredito que vocês têm todos os motivos para prestigiar essa obra-prima de nosso teatro e que agora é também uma obra de altíssimo nível do cinema nacional.

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