Crônica – A Pedra.

Esta crônica é de autoria de Franz Lima.

Quase nove da noite. O tempo está frio de novo. De novo também estou sem agasalho.

As pernas doem. Passei o dia catando sucatas. Só comi uma coxinha e bebi água. Nada mais.

Cheguei cedo ao beco. Cumprimentei uns conhecidos e me sentei no lugar de sempre. Há regras aqui e uma delas é muito respeitada: o lugar onde alguém vai fumar, depois de marcado, não pode ser tomado.

Já deve ter uns oito meses que estou nessa. Não vou culpar a pobreza ou a família que não me ama. Nunca fui pobre e amor não faltou. Mas o pó já não bastava. A pedra era a única coisa que me dava onda. Então, um dia, eu me dei conta de que havia abandonado tudo. Foda-se tudo. Só fumar me interessava.

Sei onde minha família está. Já passei em frente da casa umas dez vezes, de madrugada, só para ver se a coragem de voltar batia, mas a vergonha sempre foi maior. Eu decepcionei tudo e todos.

Uma garoa bem fina começa. O frio aumenta e dá pra ver os cachimbos sendo acesos. Algumas pedras para dormir e sonhar.

Meu amigo mais chegado apareceu. Está muito mais magro que eu. A fome estampada nos olhos. Mas, como já disse, fumar é prioridade.

Acendemos juntos. Isso é o mais próximo de amizade que me restou.

Alguns passam na nossa frente e olham. Eles querem fumar, porém terão que batalhar a grana pra isso. Uns roubam nas redondezas, outros matam. Tudo é questão do nível do vício. Eu, confesso, só roubei uma vez.

Dou a primeira tragada e a onda me arrasta para um lugar mais calmo. A fome e a vergonha somem por breves momentos. Não vejo mais meu amigo, apesar de saber que ele também embarcou.

A luz do cachimbo ilumina meu rosto. A alma continua escura.

O resto aconteceu muito rápido. Um cara chegou e tentou tomar as pedras que não usei. Eu resisti, mas algo furou minha barriga. A dor é breve. Olho para o lado e meu amigo está morto. Os outros não fazem nada para nos ajudar. Os ladrões são rápidos e covardes. Péssima decisão a nossa de ficar no canto mais isolado. Péssima decisão.

Olhei para a camisa e percebi a mancha vermelha aumentando. Mijei de medo. Nestes rápidos minutos, mesmo tão perto da morte, percebi que as luzes dos cachimbos continuavam a oscilar, iluminando as faces dos desesperados. Ainda assim, lamentei não poder dar mais uma tragada.

Logo, todas as luzes cessaram.

Acordei com a chuva no rosto. O frio estava muito mais forte e eu tremia. Não olhei para baixo por longos segundos. O furo seria muito grande? Não sentia as pernas. Olhei e não havia buraco ou sangue. Então, percebi que algo estava em cima da minha mão. Olhei para o lado e vi meu amigo, realmente morto. A barriga cortada e sem suas coisas, assim como eu. Fomos roubados e, por algum motivo, me pouparam.

Afastei minha mão da dele. O frio do seu corpo era maior que o da chuva.

Levantei e olhei ao redor. Desolação e sujeira sem fim. A morte me visitara.

As mãos tremeram e uma tontura forte me atingiu. Vomitei. Melhorei.

Meu amigo estava no chão e, enfim, em paz.

Saí do beco e andei sem rumo. Fui poupado da morte, porém vivi cada segundo da agonia dele. Eu vivi sua partida, talvez quando em desespero ele agarrou minha mão.

Caí numa calçada e lá chorei por tudo que perdi. Chorei pela família, por meu amigo assassinado a troco de nada, por minha dignidade e o futuro abandonados.

Será que ainda haveria esperança?

Caminhei bastante, mesmo fraco e com fome. Parei em frente a uma porta branca e lá fiquei por longos minutos. Adormeci.

Uma mão me tocou e despertei com medo. Será que os assassinos voltaram?

Ouvi uma voz suave e a reconheci na hora. Acima de mim, olhando para meus olhos, estava minha mãe. Ela tinha no rosto a expressão de quem não acreditava no que via. A dó estava entranhada em cada centímetro de sua face.

O que fez a você? – ela sussurrou.

Suas mãos tocaram meu rosto e removeram uma parte da sujeira. Eu chorei e me senti algo desprezível. Ela, contudo, só sentia pena, pois as mães sempre sentirão compaixão por seus filhos.

Sem que precisássemos dizer uma única palavra a mais, ela me ajudou a levantar e me pôs para dentro da casa. Muito havia para ser dito. Muito havia para ser consertado.

Nos braços dela, finalmente protegido, lamentei a morte do único amigo que tive naquele inferno. Sua jornada havia acabado, mas a minha apenas começara. Seria um longo e tortuoso caminho para sair do vício. Eu agradeci por mais esta oportunidade. E eu não retornaria ao valão de onde vim, isso era uma promessa…

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