Em algum tempo distante, houve uma era em que o rock, leia-se música com bastante guitarra, peso e um pouco de atitude, dominava a Terra. Não estou falando dos anos 60, 70 e até parte dos 80, e sim o início dos anos 90. Nessa época bandas como Guns and Roses e Metallica vendiam horrores de discos, tinham sucessos nas Billboards da vida e qualquer pessoa fora do nicho roqueiro sabia da existência delas. Talvez 1992 tenha sido o último ano em que o rock no formato Arena, grandioso, megalomaníaco, desfilou pela Terra. Um marco desse início do fim foi a morte de um dos seus mais icônicos representantes, Freddie Mercury, que saiu de cena em novembro de 1991 e cinco meses depois, seus companheiros de banda resolveram fazer um festival que marcou época. O Tributo a Freddie Mercury, que completa 30 anos no dia 20 de abril deste ano marcou uma era, mas também ajudou a sepultar outra.
O show organizado pela banda e Jim Beach, foi marcado para o dia 20 de abril de 1992, no icônico estádio de Wembley, em Londres, e tinha a missão, além de homenagear o finado ícone, realizar uma campanha de conscientização do risco da Aids, que até aquele momento era de uma letalidade incrível e vitimava milhares de pessoas pelo globo. Com transmissão pela televisão (no Brasil deu na Bandeirantes), fez o mundo parar pra ver um desfile do melhor do rock e pop mundial (vá lá, britânico). Com um estádio lotado e diversas homenagens via telão, inclusive de ausentes na festa, como os então pré-dinossauros Mick Jagger, Phil Collins e Paul McCartney, que deram sua benção ao festival. O que se viu pelas três horas seguintes foi um desfile marcante de uma época. Metallica e Guns and Roses, as maiores bandas do mundo (que logo teriam a ingrata companhia de um certo Nirvana, avesso às arenas, à fama e esse glamour todo), no auge do sucesso abriram os trabalhos tocando sucessos. O Metallica prestigiando seu Black Album e o Guns, com toda a megalomania da banda, com backing vocals, teclados, tocou seu clássico Paradise City e o cover melhorado de outro ícone, o velho Dylan, Knockin’ on Heaven’s Door, para êxtase do estádio londrino. Meio como um gaiato tentando entrar no jogo, ainda tivemos o Extreme, surfando ainda na onda do More Than Words, fazendo um belo medley do Queen. Def Leppard, representando a farofada de responsa inglesa teve seu espaço com Hammer to Fall, com Brian May. Uma primeira parte de show com o melhor do peso norte-americano no auge, uma aposta que ficou na história (Extreme) e um Def Leppard, que outrora vendia milhões, começava sua queda. A diva Elisabeth Taylor ainda deu sua mensagem dos perigos da Aids antes do real tributo.
O show em si foi um desfile de sucessos do Queen e participações de amigos. Cantores pop que na época tinham cartaz, mas que ficaram no vácuo da história, como Zucchero, Paul Young e Lisa Stansfield; ícones como Roger Daltrey, Robert Plant e Tony Iommi, que já davam os sinais de desgaste e o fim de uma era; tivemos também alguns caras talentosos, mas que se perderam nas carreiras, como Seal e Gary Cherone, do Extreme, abrilhantaram a noite. Um momento inesquecível foi a incrível interpretação de Under Pressure, que David Bowie e Annie Lennox apresentaram, num show teatral de glamour, sexy e provocante. Aliás, David Bowie, ao chamar seu antigo guitarrista Mick Ronson e Ian Hunter do Mott and The Hoople, que junto ao Queen tocaram o hino glam, All the Young Dudes, parecia uma carta testamento daqueles que nos anos 1970 e 1980 pisavam como gigantes na Terra e hoje já não eram mais aqueles caras tão jovens e bacanas do pedaço. Bowie mais uma vez surpreendeu o mundo ao se ajoelhar e rezar um Pai Nosso na frente do palco para uma plateia atônita.
Na parte final tivemos ainda George Michael, pop star do início da década, com Lisa Stansfield cantando a bela These are the Days of our Lives, mas principalmente com sua maravilhosa interpretação de Somebody to Love, foi sensacional, cantando demais, dando a entender que até poderia substituir o Mercury, nem que numa tour caça níquel. Mas nada aconteceu, nem a tour caça níquel e nem George Michael, que parecia que ali chegava ao seu auge e a tendência seria estourar cada vez mais, passou o resto da vida sem maiores hits e tendo uma morte relativamente precoce.
Talvez Bohemian Rhapsody, onde Elton John, já dando ares de tiozão do rock, e ainda mais com a visceral interpretação de Axl Rose, na parte final da música, parecia demonstrar uma passada de bastão da turma dos anos 1970 para os anos 1990. Um belo espetáculo marcante, mas que simbolicamente não confirmou o que parecia ser. Axl ainda comandou a massa com seus rebolados e voz única em We Will Rock You e para terminar, Liza Minelli, amiga do finado Freddie, chamou a plateia e os convidados para um apoteótico We are the Champions, marca registrada do Queen.
Me lembro que assisti no alto dos meus 13 anos esse tributo, numa pequena televisão numa segunda-feira de 1992, e a cada artista que tocava aprendia e conhecia mais e, para um novato músico, aquilo era uma aula de história de música, de rock e de pop. Logicamente foi mesmo, mas vendo com olhos de 30 anos depois, aquilo parece que sem querer marcava o fim de uma era. Aquela era de um rock de arena, megalomaníaco, sem limites, representado ainda no Guns and Roses e Metallica, e aquela turma dos 1970, que até 10 anos atrás ainda dominava, já dava sinais de cansaço e de cheiro de naftalina. Até os cantores pop não emplacaram mais nada, uns sumindo de vez, outros virando cantores de nicho, como o talentoso Seal, e inclusive o George Michael, que simplesmente parecia sem limites naqueles tempos, ficou por ali. Logo depois do tributo, o Nirvana e assemelhados chegariam cortando o cabelo do hard rock, o brit pop escantearia os anos 1970, com a veneração do Oasis aos 1960 e até as Spice Girls entravam de sola de botas, renovando o pop nos anos 1990.
E o que o Queen tem que ver com isso? Absolutamente nada. Deacon, May e Taylor fizeram uma gigantesca homenagem ao gigante Freddie Mercury, além de contribuir com a causa da epidemia de Aids, que na época já chegava a mais de 10 anos e vitimava cada vez mais pessoas. O Tributo a Freddie Mercury, sendo visto pelo prisma histórico, dá uma cara de fim de festa ou troca forçada de uma era, 1992 ainda era uma época em que o rock e o pop de qualidade tinham seu espaço em gravadoras, vendas e principalmente: no gosto popular. Bandas ainda no seu auge arrastavam um povo para serem vistas tocando e motivavam a molecada e o povo em geral a curtir um Enter Sandman, um Paradise City e até um I Want Break Free. O Tributo a Freddie Mercury é um deleite visual e sonoro, mas hoje já é um retrato de um tempo não tão distante, que não existe mais e foi limado rapidamente, pelas guitarras sujas do grunge, o rap americano, o simplismo do rock inglês dos 1990 e o pop dos anos 1990, que não sampleavam mais o som do Queen, um show que foi um retrato dos gigantes que ainda andavam na Terra, mas seus passos e boa música viraram apenas nostalgia 30 anos depois.