Se existe algo que é quase uma unanimidade nacional, ela se se chama Jessé Gomes da Silva Filho, ou, para o Brasil inteiro, Zeca Pagodinho. Pouco se poderia imaginar que aquele franzino partideiro das rodas de samba, que estourou em 1986 com o boom do pagode dos anos 1980, hoje possa ser considerado um dos artistas referência no estilo, sendo aplaudido e amado até por artistas e fãs de outros estilos. Pode parecer clichê, mas Zeca é Brasil, um samba divertido, refinado e respeitado. Porto Alegre teve a honra de receber a figura única, em dois shows no fim de semana passado, apresentando o show do disco Mais Feliz, que teve sua tour interrompida pela pandemia. Os dois com casa lotada, e o NoSet conferiu a primeira noite, numa sexta-feira agradabilíssima de primavera de outubro.
Com um Araújo Vianna sedento por bom samba, com o cenário de palco idealizado por Zé Carratu, lembrando um morro carioca iluminado, e com uma super banda de 12 integrantes, encabeçada pelo gênio das sete cordas e fiel escudeiro do Zeca, o Paulão Sete Cordas, com meia hora de atraso Zeca sobe ao palco e manda ver Verdade, clássico de Nelson Rufino, do seu disco de 1996, já fazendo a plateia ficar de pé e não sentar mais o show inteiro. Zeca, com sua simpatia de sempre e alto-astral, brinda com o povo, ora com cerveja, ora com vinho, mostrando uma felicidade e emoção de ver a galera se divertindo com seu show, depois de dois anos de pandemia, que quase o levou à depressão. Saudade Louca, do amigo Arlindo Cruz, continua na toada com o samba refinado e classudo do cantor. Zeca explica que está com um desconforto na perna e está sendo quase um sacrifício fazer o show, mas não deixa a peteca cair e agradece a compreensão dos fãs. Não Sou Mais Disso, de Jorge Aragão, segue a celebração da alegria de Zeca, mais uma do disco Deixa Clarear, de 1996. Nota negativa é que o microfone do sambista estava muito embolado, com pouco volume, tornando algumas falas dele de difícil compreensão.
Lama nas Ruas, clássico dos anos 1980, dele e do Almir Guineto, fazem todo mundo dançar junto. Como se fosse uma coletânea de grandes hits, Zeca emenda mais uma do Aragão, Mutirão de Amor. Zeca Pagodinho é quase um maestro da sua banda, comanda o andamento, acelera a cantoria, às vezes nem canta, deixa o povo ou a banda cantar. Na sequência ele toca duas do último disco, Mais Feliz, com destaque pra segunda, homônima, com uma letra fantástica. Vai Vadiar, sucesso dos anos 1990, mostra a força dos arranjos da banda, que logo emenda Judia de Mim, do seu disco de estreia, de 1986, mostrando a força do repertório do pagodeiro, ficando difícil não se deixar levar pelo super show. Encerra a primeira parte do show com Cadê Meu Amor, de 2005, e Seu Balancê, um dos seus maiores sucessos. No ínterim, a banda toca um instrumental de A Voz do Morro, lembrando as gafieiras do Rio de Janeiro e Zeca aproveita pra dar uma pausa. Depois da breve pausa, ele toca uma das mais lindas canções do samba nacional, O Sol Nascerá, de Cartola, num primor de arranjo e interpretação com assinatura de Zeca. Ogum segue o roteiro, e devoto dele, Zeca se emociona e dá uma das melhores interpretações do show.
Patota de Cosme, do já distante 1987, faz o auditório Araújo Vianna dançar junto e Quando a Gira Girou, que tocou muito no seu disco acústico, segue o roteiro da alegria do povo. Maneiras, aquela do se eu quiser fumar eu fumo e beber eu bebo, faz a alegria de uma noite e uma plateia consumindo seu chopp e brindando com o sambista. E Quintal do Céu segue a elegância do samba com mais uma vez a banda dando show.
Samba para Moças, a canção do disco que mudou a carreira do artista, de pagodeiro a refinado e respeitado sambista, mostra a categoria do repertório dele, que une belas letras, com uma orquestração das melhores, e poder da banda recheada de percussão, naipes e cordas afiadas. Vivo Isolado do Mundo, samba antigo de Alcides “Malandro Histórico” da Portela é aquela de dançar colado e apreciar a poesia. Segue o baile uma das suas primeiras canções, Coração em Desalinho, do saudoso Monarco em parceria com Ratinho, dá mais uma vez um ar de pagode anos 1980 ao espetáculo. E pra fechar o cronograma principal do show (claramente reduzido, talvez pela lesão na perna do artista, que fez o show na raça) ele canta aquela música que é quase um hino da leveza do brasileiro (ou aquele tempo em que se tinha leveza…). Deixa a Vida Me Levar, de Serginho do Meriti e Eri do Cais, faz o auditório cantar e não pensar nos problemas da vida, nem que seja por alguns minutos, ou a duração da sensacional e clássica canção. Zeca ainda teve tempo pra fazer um pot-pourri de clássicos, juntando Macumba, Casal Sem Vergonha, SPC, Brincadeira Tem Hora, Bagaço da Laranja, com direito a chamar um casal que estava na plateia dançando para mostrar o talento deles, no palco, casal esse que era impedido de dançar por um segurança, o que provocou a ira do próprio Zeca, às vezes tem gente que tem medo de deixar os outros serem felizes. Enfim, o show apesar de reduzido, fez todo mundo sair de alma lavada.
Com certeza, um dos shows mais animados do Araújo Vianna, Zeca consegue misturar a tradição com o popular, homenageia antigos compositores, amigos e dá uma força para novos compositores. Um exemplo da generosidade do coração do Zeca, um sambista de responsa, que com sua simplicidade e sem nunca ter forçado a barra criou uma persona, uma entidade, como já disse, uma unanimidade nacional, que transpassa a barreira do samba, um show de primeira para um público de primeira em um local mágico da nossa cidade, o Araújo Vianna, onde qualquer estilo e artista são muito bem-vindos. Um brinde ao nosso Zeca brasileiro.
Crédito das fotos: Vívian Carravetta